O cristianismo precisa ter uma expressão diante da sociedade. É fato que a Igreja foi capturada pela religião e tornou-se sua refém. Entretanto esta realidade não é irreversível nem soberana para que os cristãos que se conscientizaram disso fiquem numa posição de passividade, sem nada demonstrar à sociedade que está satisfeita com uma igreja amoldada a sua cultura contemporânea.
Jesus jamais pretendeu que a Igreja se manifestasse como religião. Aliás, ele se opôs veementemente à prática do judaísmo reduzida à formalidade religiosa. Então, devemos nos preocupar em saber como a Igreja pode se expressar sem ser por meio do caráter religioso. A resposta para essa questão pode ser encontrada na família.
É totalmente correto dizer que Jesus veio nos revelar o Pai. Contudo, a identidade de Pai não existe por si só; necessariamente envolve uma família. Portanto Jesus só conseguiria nos apresentar o Pai se, juntamente, apresentasse a respectiva família. Podemos, então, dizer, de forma mais completa, que Jesus veio nos revelar a família divina, a Santíssima Trindade. Ou seja, por meio do Filho entramos em relacionamento com o Pai e com o Espírito Santo.
Assim considerando, podemos nos apropriar da verdade de que Jesus proporciona condições de restabelecermos a família aos princípios de Deus. Somente sobre tal fundamento haverá condições de o plano de Deus fluir por meio de nós.
Para cumprir sua missão, o homem precisa de uma família
Com o passar do tempo, a Igreja tornou-se refém da religião, e esta passou a ser sua única expressão. A Igreja adotou uma liturgia para ser praticada num determinado local. Além disso, em vez de evidenciar a manifestação de como Deus veio (e vem) até ao homem, transformou-se em mais uma receita de como o homem pode chegar-se a Deus.
Para que a Igreja resgate sua finalidade, precisa recuperar suas primeiras expressões históricas, anteriores à concepção do cristianismo como mais uma religião, num tempo em que a falta de identidade dos cristãos com as religiões era tão gritante que muitos foram martirizados sob a contraditória acusação de serem ateus.
Inicialmente, a grande expressão da Igreja era como família, com uma amplitude maior do que a família nuclear. Isto também tinha implicações de símile profético, pois a família natural deve ser uma representação da família divina. É por isso que o relacionamento entre Jesus e a Igreja se explica através do casamento natural entre marido e esposa e vice-versa. Jesus não é o chefe de uma organização nem de uma equipe, mas o esposo, cabeça da sua família. Logo a palavra chefe não pode ser considerada sinônimo de marido ou pai.
Para que o homem leve adiante a missão que Deus lhe confiou, ele não precisa de uma equipe, mas de uma família. Tal qual como seria com Adão e foi com Noé e Abraão, também é conosco. Para que eles conseguissem colocar em andamento o plano de Deus, precisavam de uma família. Desta forma, o homem encabeça uma missão, subdividida em submissões que caberão à esposa e filhos. Contudo, a missão do pai de família não pode ser concebida de maneira independente, originada nele mesmo, mas sim como uma submissão derivada da vontade divina, ou seja, relacionada ao cumprimento do propósito de Deus.
Isto não desmerece a missão da esposa ou dos filhos, como se simplesmente tivessem que cumprir a vocação do pai da família. Cada um tem sua própria missão, sua própria vocação, nenhuma, porém, desconectada das outras, e todas subordinadas ao propósito de Deus. Ou seja, é na vinculação à missão do outro que se encontra sentido para a própria missão. Deus não deu nenhuma missão independente para alguém; todas as missões, de alguma forma, estão interligadas como que numa rede.
Em vez de uma equipe, Jesus formou uma família
Com a institucionalização do cristianismo em religião através das igrejas, os cristãos também substituíram o conceito de família pelo de equipe, mais compatível com o caráter organizacional. Desta forma, os cristãos passaram a agir como equipe, quer fazendo parte, quer liderando. Contudo, este não é o pensamento de Deus.
Por falta de uma mente transformada pela renovação (Rm 12.2), lemos com lentes equivocadas o conceito de discipulado, imaginando que Jesus formou uma equipe de discípulos. No entanto, se olharmos com mais profundidade o relacionamento estabelecido entre eles, veremos que Jesus se pautou pelo conceito de família, e não pelo de equipe. Vejamos.
Se não bastasse ter escolhido a família para sua encarnação, também viveu submisso a seus pais naturais e integrado a sua família até a manifestação pública de seu ministério. O início de seus milagres se deu numa festa de casamento, com a participação direta de sua mãe.
Posteriormente declarou que sua mãe e seus irmãos eram aqueles que faziam a vontade do Pai que está céu (Mt 12.46-50). Muito embora tenha se instalado uma interpretação desse texto que atribui certo desprezo à família natural de Jesus, é bem provável que sua intenção seja outra. Ao mencionar seu Pai, está se referindo a sua família original na qual todos podem ser inseridos, não importa que estes pertençam a uma outra natural, bastando para tanto fazer a vontade do Pai. Com isso, ao invés de desprezar a família que reclama a sua presença, ele eleva seus discípulos à condição de familiares, uma vez que se propõe a ensiná-los a fazer a vontade de Deus.
Jesus não tratava seus discípulos como equipe e muito menos demonstrava um relacionamento típico de chefia e subordinados. Ele afirmou que não lançaria fora aqueles que o Pai lhe dera e, ao final de seu ministério, pôde dizer ao Pai que os havia guardado. Na família também não escolhemos aqueles que Deus nos envia, mas cuidamos deles, pois são insubstituíveis. No Ocidente, ainda temos a possibilidade de escolher o cônjuge para iniciar a família, mas na cultura oriental, essa função cabia aos pais.
Caso Jesus tivesse considerado seus discípulos como equipe, poderia ter feito, e certamente o faria, a substituição de alguém ou teria chamado outros mais aptos. Mas não podia agir assim porque eles eram a sua família. Por isso teve o cuidado de passar a noite conversando com o Pai para saber dele quais seriam os doze que o acompanhariam, aceitando entre eles o traidor.
Sendo a Trindade uma família, a Igreja nunca poderia ser uma equipe
Jesus não se dirigia a Deus como seu chefe, mas como Pai, que, por sua vez, tratava-o como Filho, obviamente. Nisto percebemos a expressão de família da Trindade. Era sempre uma conversa entre Pai e Filho, por meio da qual seus discípulos sempre podiam aprender mais sobre a família em que estavam ingressando. Jesus não perdeu a oportunidade de ilustrar seus ensinamentos com parábolas, a maioria das quais falava sobre o reino e tinha como pano de fundo os aspectos familiares.
Fica cada vez mais claro por que Deus não repudia seu povo com carta de divórcio, pois o considera como sua esposa, portanto sua família insubstituível. No coletivo, como povo, Deus nos considera como esposa e no individual, no relacionamento pessoal, somos seus filhos. Jesus se dirigiu aos seus íntimos chamando-os de filhinhos, e o Espírito Santo clama em nós ao Abba (Paizinho), como demonstração de que somos inseridos na família de Deus, e não em sua equipe.
Somos incluídos na família divina através de Jesus, O Unigênito que se fez Primogênito. Deus considera a Igreja como sua família; considerá-la como instituição é um aviltamento, pois o assunto de Deus não é equipe, mas família. Podemos observar a sintonia: o Pai falando a respeito da esposa, que na verdade é a esposa de seu Filho. O Pai tratando Jesus como Filho. O Filho nos chamando de filhinhos e nos ensinado a chamar Deus de Pai, e o mesmo fazendo o Espírito Santo. A consequência mais natural é que a Igreja que nasceu desse relacionamento familiar também tivesse tal expressão. Não vemos como isso poderia ser diferente. Uma equipe, organização ou instituição é fogo estranho diante de Deus, que jamais pretendeu tal coisa.
Qualquer pessoa que deseje cumprir sua vocação tem que ter em mente sua inserção familiar. É por meio da paternidade que adquirimos a consciência de família. Por intermédio de Jesus, conhecemos o Pai e estabelecemos uma relação amorosa ao descobrirmos o quanto somos amados como filhos de Deus. A partir dessa experiência em que recebemos o espírito de adoção, podemos iniciar nossa experiência de família segundo o conceito de Deus. Isso implica primeiramente crer que foi o amor de Deus que providenciou uma família pela qual viéssemos à existência. Portanto nossa família natural deve ser motivo de louvor a Deus, e não de murmuração.
Assim, aliado com Deus, tenho os pré-requisitos para constituir minha própria família natural, admitindo que, da mesma forma como Deus escolheu a família na qual nasci, também escolherá os filhos que farão parte de minha família, fruto de minha paternidade.
Entretanto, esta compreensão não deve se restringir apenas ao plano natural, mas abranger também o espiritual. Logo, as pessoas que participam comigo da vida cristã não podem ser consideradas como uma equipe a serviço do reino, mas uma família introduzida à família divina, pois é assim que Deus nos trata e, portanto, é assim que devemos nos tratar. Quando se fala em família segundo Deus, o maravilhoso é que família natural e espiritual são conceitos que se interligam. Assim como devo tratar os irmãos de fé como pessoas que fazem parte de minha família natural, também devo considerar minha família natural como integrante da espiritual e, consequentemente, cuidar dela. Logo, devo estar atento para que, no intuito de dar segurança à família natural, não a desenvolva como um círculo fechado e egoísta, ainda que bem-sucedido do ponto de vista social. A família natural deve ser sempre o núcleo da igreja.
À equipe o que é da equipe e à família o que é da família
O exemplo que temos da família divina é o de ser aberta e inclusiva através do amor, pois o Pai nos deu o seu próprio Filho. Também foi assim que Abraão aprendeu de Deus. Em todas as situações, somos ensinados a dar e não reter nada para nós mesmos. Um pai, ao constituir seu patrimônio, abre mão dele em favor da família, deixando de ter posses pessoais para beneficiar os seus. Assim, tudo o que é da família, é dele, mas também tudo o que é dele, é da família.
O patrimônio é uma das formas como a família se expressa à sociedade. Ela pode ser rica ou pobre, sovina ou generosa, humilde ou ostentadora. Há muitas famílias que reduzem o padrão de vida a uma quase miséria em favor de preservar um patrimônio. Outras empregam todos os recursos para ostentar uma vida de aparências.
Na grande família que se formou em Jerusalém logo depois da festa do Pentecostes de 33 d.C., havia algumas expressões que marcaram a história. Uma das mais fortes era a da generosidade econômica, pois nesta comunhão fraterna não havia necessitados. Tratava-se, portanto, de uma família rica, sendo que os familiares tinham nela as suas riquezas.
Numa família, a propriedade privada compreende coisas pessoais ou de pouco valor. Aquilo que é de grande valor pertence a todos, e a maioria dos objetos tem uso comum. Já numa equipe ou numa organização, os bens pessoais de grande valor são privados e se colocam em comum as coisas de pequeno valor. Neste aspecto, torna-se imprescindível que a família-igreja vença a barreira dos 10%. Quando falamos em dízimo, estamos colocando em comum uma pequena parte, enquanto que a grande continua pertencendo ao âmbito privado. Quando evangelizamos, não devemos convidar alguém para fazer parte de nossa reunião ou de nosso grupo, como alguém que será mais um componente da equipe. O convite é para que este alguém se torne um integrante de nossa família. Isso implica paternidade e adoção.
No início da Igreja, os mesmos termos utilizados para identificar os familiares aplicavam-se, de forma mais ampla, para designar o relacionamento entre os que tinham a fé em comum: irmãos, irmãs, pais e mães. Outros termos como apóstolos, profetas, doutores, pastores, mestres, evangelistas, diáconos, presbíteros, anciãos etc. também estavam vinculados ao ambiente familiar. Com o passar do tempo, à medida que a Igreja se desvinculava do ambiente doméstico, esses novos termos foram ganhando importância sobre os termos familiares e passando a ter a conotação de estrutura hierárquica.
O objetivo a ser alcançado é o que há de mais importante para a equipe. É ele que justifica a razão de ser de uma equipe. Todos trabalham em função de se alcançar o resultado determinado, e quando alguém não está rendendo a contento, é substituído, algo que pode acontecer até mesmo com o líder. Eventuais ausências trazem a preocupação com o comprometimento das metas. Assim, o espírito de competição da equipe para fazer frente às equipes concorrentes também se instala internamente de forma latente entre os membros. Para garantir resultados, fica implícito que os fins justificam os meios, e os valores éticos ficam em segundo plano.
Diferentemente, na família, a importância está nela mesma e não se lhe aplica o princípio de substituição, já que as pessoas que a compõem são insubstituíveis. (Daí uma das razões para não haver divórcio e recasamento). A ausência de alguém traz a todos preocupações com o seu bem-estar. A família dá sustentação aos preceitos morais. Se ela enriquece, todos enriquecem; se um sofre, todos sofrem; mas se alguém se alegra, todos ficam felizes com ele e por ele. Enfim, o que é de um é de todos, e esta comunhão vai muito além dos aspectos materiais, pois a família tem alma, coração e, por que não dizer, tem espírito também. Em vez de competição, é a solidariedade que prevalece. Podemos dizer que ela é a verdadeira Igreja matricial, onde Jesus se faz presente – atendendo a sua promessa que teria cumprimento ao estarem reunidos dois ou três em seu nome.
Uma família possui identidade corporativa, a começar pelo sobrenome de cada componente, que é de fato o nome da família. Sua dignidade se empresta a todos os que a constituem, ainda que alguns se queixem de ser um fardo pesado carregar determinado sobrenome, como acontece com os membros de uma família tida como “quatrocentona” (apelido dado às famílias tradicionais).
Já é tempo de a Igreja se manifestar não mais como uma organização religiosa, mas como família, expressão da família de Deus. Afinal essa é a grande diferença entre uma família na qual habita o Espírito Santo e outras naturais, que vivem sob o jugo deste mundo.
Na equipe ou nas organizações, as pessoas se aposentam e logo são substituídas, pois não têm mais serventia aos seus objetivos. As pessoas são avaliadas pela utilidade em razão dos objetivos e, por isso, descartáveis. Já na família não há aposentadoria, e a sabedoria dos mais velhos é muito útil. Em vez de ser desligado, o mais velho é promovido a avô, ganhando um novo status que representa muito mais carinho, respeito e consideração.
Numa equipe, os fracos são rejeitados, não têm função nem espaço. Na família, estes, além de acolhidos, tornam-se o centro das atenções e do amor comum. Nela, o fraco é o principal agregador e motivo de união. Os portadores de necessidades especiais devem se adaptar à sociedade, enquanto que a família se adapta a ele.
Na família, a pessoa vale mais que sua própria conduta com méritos ou deméritos. Não obstante a família ser a principal formadora dos valores morais, ela não abandona aqueles que optaram por não seguir a moralidade. O pai ensina até com castigos para que o filho siga o caminho certo, mas não abandonará o filho que não o seguiu.
Da igreja primitiva se dizia que era um o coração e a alma dos que criam, que tinham tudo em comum, sem necessitados, pois os bens particulares foram disponibilizados à família da fé. Nisto notamos que a expressão da conversão também fugia dos padrões atuais, pois esta experiência expressava a renúncia do individualismo em favor do coletivo. Era como se alguém estivesse vivendo fora da família e, de repente, a encontrasse. Dando seus bens à família, continuava sendo proprietário deles e também dos bens que outros haviam igualmente entregado.
A família e a casa não feita por mãos onde Deus quer habitar
Quando Davi tomou a iniciativa de construir uma casa para Deus, imediatamente Deus propôs construir uma casa para Davi. Deus lhe disse que não moraria numa casa feita por mãos humanas e, como ele estava construindo para Davi uma casa que não era feita por mãos humanas, logo é neste tipo de casa que Deus quer habitar. Ele não quer se isolar numa casa exclusivamente sua, mas que o homem lhe ofereça casa. “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e com ele cearei, e ele comigo” (Ap 3.20).
Quando a Igreja se instituiu, foi como se Jesus tivesse sido colocado para fora de nossos lares. Com muito boa vontade, com muita delicadeza, lhe oferecemos uma casa própria, que ele não havia solicitado, e o colocamos para fora, dizendo-lhe, no entanto, que queremos continuar sendo bons amigos dele, embora nos mantendo no controle dessa amizade, ditando-lhe o funcionamento.
Além de nos tornarmos religiosos, também pretendemos fazer o mesmo com Jesus. Não levamos em consideração que esta foi a grande questão de Jesus no embate com os fariseus e escribas que haviam estipulado a religião como intermediária entre o homem e Deus.
Gostei muito do artigo! Louvado seja Deus!