“Deus não escolhe os capacitados; capacita os escolhidos.” Você provavelmente já deve ter ouvido essa frase pelo menos uma vez na sua vida. Geralmente é usada em momentos de superação, nos quais alguém que se julgava incapaz de fazer algo é alçado pela inspiração e poder divinos a cumprir com excelência uma determinada tarefa. Apesar da boa intenção, esta frase contém ao menos dois grandes equívocos, seja porque o autor, de fato, não entendia muito bem a natureza dos dons e aptidões humanas, seja porque uma eventual tradução não foi feliz.
O primeiro equívoco
Que história é essa de que Deus não chama os capazes? Se você precisasse reformar seu banheiro, trocando todos os azulejos, chamaria um pedreiro ou um eletricista? Se fosse convidar alguém para cantar em um evento importante, chamaria um profissional ou um cantor de karaokê? Criamos um conceito tão equivocado sobre a origem de nossos dons e aptidões que tendemos a depreciá-los ou a atribuí-los à nossa natureza decaída, sendo que, verdadeiramente, eles têm origem em Deus. É isso o que podemos ver na parábola dos talentos (Mt 25.14-30; Lc 19.11-27), segundo a qual é o senhor da terra quem entrega aos servos a capacidade (talentos), e especialmente em Tiago (1.17), onde está escrito que “toda boa dádiva e todo o dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes (…)”. Ora, não estamos falando de parte das boas dádivas ou parte dos dons perfeitos. Todos têm sua exclusiva fonte em Deus.
Se você pensa que pode produzir em si mesmo alguma coisa boa ou, ainda, que o diabo pode criar um dom em você só para levá-lo ao pecado, você está superestimando a capacidade de ambos. O homem não pode criar em si mesmo um dom justamente porque ele é um ser criado, ou seja, sempre partirá da matéria-prima divina e da capacidade extraordinária que esta matéria-prima possui. Se foi Deus quem criou o meu cérebro, por exemplo, qualquer talento oriundo do cérebro possui origem em Deus. Se ele criou as mãos, os pés ou qualquer outra parte do corpo, o raciocínio é o mesmo.
Por outro lado, o diabo não pode criar um dom ou dádiva justamente porque a Bíblia atribui tal função a Deus. O que o diabo faz é utilizar o dom de Deus no homem para seus intuitos maléficos. Vamos pensar, por exemplo, em Hitler. É consenso que ele era um excelente orador. Esta capacidade de falar às multidões não foi produzida pelo diabo, mas por Deus. A utilização da capacidade, sim, é que foi deturpada. A mesma bela voz que pode cantar boas músicas, pode cantar músicas ruins, o que não tira a beleza da voz em si, mas pode tirar a beleza de sua utilização.
Há também, e não podemos ignorar isso, situações em que os dons são reconhecidos por instituições humanistas ou até mesmo diabólicas que acabam por incentivar o desenvolvimento desse dom para fins escusos. Muitas vezes, isso justamente se dá porque internamente a igreja sempre trata os dons com desconfiança, o que permite que oportunistas recolham o benefício do talento para seu próprio benefício.
Os “capacitados” da frase que estamos estudando são, na verdade, os orgulhosos. Deus odeia tanto o orgulho que essa palavra, na bíblia on-line, apresenta mais de 600 incidências, incluindo alguns sinônimos, como soberba e jactância. Certamente Deus se opõe aos orgulhosos e o faz justamente porque eles não reconhecem em si o dom divino, acreditando que este é fruto de sua própria capacidade. É isso que podemos ver em tantos casos, mas especialmente no de Herodes, que acabou comido por bichos, uma vez que ao exercer o seu dom, não reconheceu sua origem em Deus (At 12.23). Note-se que nesse mesmo capítulo, a bíblia diz que Herodes estendeu as mãos para maltratar alguns da igreja, matando Tiago e prendendo Pedro, e nem por isso foi comido por bichos.
O segundo equívoco
Em segundo lugar, será que Deus capacita os incapazes? Primeiro vamos acertar os termos: os incapazes da frase são aqueles que, apesar de não terem um dom ou aptidão, acabam por agir como se o tivessem por ação de Deus. Acredito que isso se dá apenas quando um capacitado natural não está disponível, ou seja, essa capacitação circunstancial é resultado mais da omissão de pessoas que enterram os seus talentos do que da real vontade de Deus. Ou seria correto crer que não há nada de errado em uma mão agir como um pé, ou a boca como uma orelha? O padre Marcial Maçaneiro disse certa vez que a missão no mundo é tão exigente que nela cabem todas as nossas diferenças, o que inclui, no meu entendimento, toda a diversidade dos nossos dons. Se admitíssemos, porém, que Deus sempre atribuirá todos os dons a todas as pessoas, seríamos todos iguais, nossa bela diversidade desapareceria e precisaríamos bem menos uns dos outros. Será que isso é vontade de Deus?
Se nos voltarmos novamente para a parábola dos talentos, verificaremos que o que tinha mais recebeu o talento do servo infiel, permitindo-nos concluir que foi a omissão de um que possibilitou ao outro usufruir de um dom que não era originalmente seu.
Pode parecer prazeroso e politicamente correto sempre nos acharmos incapazes de tudo, mas isso às vezes é mais fruto de falsidade do que de humildade. No fundo, sabemos que daremos conta do recado, mas pareceria orgulho ou pecado dizermos abertamente isso. Será que uma postura assim glorificaria mais a Deus do que se disséssemos: “se posso fazer isso, só posso porque Deus me capacitou”? Ou poderíamos acusar de ser orgulhoso o macaco por sua habilidade de subir em árvores, ou o peixe por nadar excelentemente?
A leitura que fazemos da nossa “incapacidade” e da dos nossos irmãos frequentemente parte do princípio de que o dom ou aptidão para certo ato não é natural, quando na realidade não podemos afirmar isso. Em outras palavras, muitos de nós têm aptidões divinas que ou ainda não conhecemos, ou ainda não estão plenamente desenvolvidas, o que traz a falsa impressão de que somos “incapazes” e que, como num passe de mágica ou por milagre, a capacidade nos sobreveio. Às vezes se trata disso, mas na maioria das situações estamos apenas diante do reconhecimento de um dom que ainda não conhecíamos e aflorou por conta da ocasião favorável.
Se pudéssemos apontar um grande malefício dessa frase sobre a capacitação, seria neste sentido: não reconhecer o dom ou talento do próximo nos impede de incentivá-lo adequadamente, tornando nosso irmão mais vulnerável a ouvir a sedução da sociedade que ou utilizará o dom divino para aquisição de riquezas, ou para implantar valores que não são cristãos. Ambas situações não são de forma alguma desejáveis.