Se o surgimento do computador, no século XX, inaugurou uma nova revolução intelectual, o fato de poder conectá-lo a uma rede mundial, interligada a milhões de outros computadores, exponenciou suas capacidades e potencialidades e lançou a humanidade em uma revolução intelectual (e tecnológica) ainda mais radical.
Todos os meios de comunicação estão convergindo para o meio digital e o computador está no centro dessa revolução. Novas tecnologias digitais estão governando a produção e o consumo, guiando o comportamento das pessoas e moldando suas percepções. O futuro do conhecimento e cultura não mais repousa sobre livros ou jornais, programas de rádio ou televisão, filmes ou CDs. Ele repousa em arquivos digitais forjados nesse meio universal à velocidade da luz.
A migração da nossa leitura no texto impresso no papel para a leitura na tela de um computador não só muda a maneira como nós interagimos com o texto. Influencia também o grau de atenção que dedicamos a ele e a profundidade da nossa imersão nele. Os links que hoje povoam os textos na internet não só nos indicam material complementar, mas nos impelem a eles. Os links nos encorajam a navegar para outros textos ao invés de devotarmos atenção ao texto original. Hyperlinks são desenhados para captar a atenção, e seu efeito colateral é a distração, o que transforma nossa antiga leitura compenetrada e atenta em uma leitura tênue e fragmentada.
Se não bastassem os hyperlinks, temos na tela do nosso computador avisos permanentes de chegada de novos e-mails, notícias, recados, lembretes de compromissos, alertas e outros programas. Todos eles competindo por nossa atenção. Trata-se de um verdadeiro ecossistema de tecnologias de interrupção.
À medida que a internet se expande, outras mídias como CDs, DVDs, cartões postais, jornais, revistas etc. se contraem. Vários jornais tradicionais declararam falência e interromperam sua distribuição na última década. Em seu início, o design da internet foi inspirado nas publicações impressas. Hoje é a internet que influencia o design gráfico de muitas revistas, as quais agora parecem websites “impressos no papel”. Até programas de televisão e filmes estão tentando se parecer com o formato da internet.
A influência da internet e a revolução dos computadores estão em todos os lugares. Aparelhos televisores se transformaram em computadores com acesso à internet. Bibliotecas oferecem acesso wireless e dispõem de computadores conectados à rede para uso de seus visitantes. O som predominante ouvido nas bibliotecas hoje em dia é o de digitação em teclados, ao invés daquele característico provocado pelo virar das páginas de um livro. E o pior é que os usuários não estão usando os computadores com propósito acadêmico, mas para acessar as redes sociais, assistir a vídeos no YouTube ou se divertir em jogos on-line. Nas bibliotecas, já vemos as estantes de livros serem movidas para as laterais, enquanto os computadores com acesso à internet são colocados no centro.
As tecnologias digitais e seu impacto sobre nossas mentes
Estamos promovendo a distração e comprometendo a imersão que o livro tradicional proporciona. A invasão da internet está mudando nosso estilo de leitura, o que, por sua vez, traz mudanças no estilo de escrita. Há quem diga hoje que ler clássicos como “Guerra e Paz”, de Tolstói, em razão de sua densidade e extensão, seja pura perda de tempo.
Rivalizando com a criação do alfabeto e do sistema numérico, a internet talvez seja a tecnologia mais poderosa que já tenha surgido no quesito de promover alterações em nossa forma de raciocinar. A internet estimula e envolve nossos principais sentidos (tato, audição, visão) e engaja-os simultaneamente. Também envolve um sistema de recompensa imediata, o que encoraja a repetição tanto das ações físicas como mentais.
Cientistas afirmam que nossa mente é modificada em uma escala substancial, tanto física como funcionalmente, a cada vez que nós aprendemos uma nova competência ou desenvolvemos uma nova habilidade. Nossa mente é remodelada. As tecnologias digitais não somente estão mudando nosso estilo de vida e nossas formas de comunicação, mas também estão rápida e profundamente alterando nossas mentes. O uso diário de computadores, smartphones e ferramentas de busca estimulam alterações celulares em nossa mente e em nossos neurotransmissores, gradualmente fortalecendo novas conexões neurais em nosso cérebro, enquanto enfraquece outras. Isso já pode ser constatado e comprovado através de scanners de última geração. Alterações foram identificadas em usuários com exposição de apenas uma hora por dia.
Por trás desse impacto que a internet causa em nossas mentes, está um conceito esquecido em nosso processo de inteligência, que foi detalhado em 1956 pelo psicólogo George Miller. Trata-se da memória temporária, memória de longo prazo e o gargalo na transmissão das informações entre elas (figura da banheira, da torneira e do dedal).
Quando lemos um livro, a torneira do conhecimento fornece gotas constantes, as quais são controladas pelo ritmo da leitura. Com a concentração focada no texto, nós podemos transferir toda ou quase toda a informação, dedal por dedal, da nossa memória temporária para a memória de longo prazo e a partir daí forjar ricas associações essenciais para a criação de esquemas mentais (ou seja, conceitos complexos).
Entretanto, a internet nos oferece várias torneiras, todas completamente abertas, jorrando informações. Nosso dedal se enche rapidamente, à medida que corremos de uma torneira para outras na tentativa de colher todas as informações. Conseguimos transferir apenas uma pequena medida de informação para nossa memória de longo prazo (afinal, estamos coletando a água com um dedal), e o que temos transferido é uma mistura que jorra de diferentes torneiras, não de um contínuo e coerente fluxo de uma única fonte por vez.
Quando o fluxo de informação é maior que nossa capacidade de retenção e transferência, nós somos incapazes de reter a informação ou suscitar conexões com as informações já armazenadas em nossa memória de longo prazo. Nós não conseguimos traduzir a nova informação em esquemas, assim nossa habilidade de aprendizado é afetada e nosso entendimento fica superficial e raso.
Estudos mostram que um lento período de tempo é necessário para um fato na memória temporária ser transformado em memória de longo prazo, através de um processo muito delicado. Qualquer perturbação nesse processo, seja uma pancada na cabeça ou uma simples distração, pode varrer as memórias nascentes da mente. A repetição encoraja a consolidação das memórias. Horas de sono adequado também ajudam no processo de memorização. Evidências mostram que quanto mais usamos a memória, mais afiada nossa mente fica. Quanto mais afiada nossa atenção, mais afiada a nossa memória. Conexões entre memórias exigem concentração mental, reforçada pela repetição ou intenso envolvimento intelectual ou emocional (o emergente método de educação Kumon, criado em 1955 no Japão, utiliza largamente esses princípios).
Testes indicam que quando atingimos o limite da nossa memória temporária, fica mais difícil discernir o que é informação relevante e o que é irrelevante. O nosso limite é rapidamente atingido quando temos nossa atenção dividida. Quando a atenção dividida se torna nosso principal estado mental, este compromete o aprendizado profundo e o raciocínio. Tente ler um livro e fazer palavras cruzadas ao mesmo tempo – este é o ambiente da internet.
A capacidade de pensar com profundidade está sendo afetada
Vários estudos demonstram que os hyperlinks dos textos atrapalham a retenção e dispersam a atenção. Ler um texto de forma linear e tradicional aumenta a compreensão, a memorização e o aprendizado, quando comparado com um texto repleto de links. Quanto mais links, menos compreensão. Quanto mais complexo for o texto, maior prejuízo a distração causa. As pesquisas comprovam que as pessoas não leem na internet, no termo tradicional da palavra. Uma nova forma de leitura está emergindo, e ela é muito diferente da definição tradicional de leitura, como a conhecemos. Podemos chamá-la de leitura dinâmica ou superficial. O ambiente digital oferece apenas esta opção.
Hoje as pessoas estão gastando mais tempo lendo, mas é uma leitura diferente. A leitura na tela é notadamente e comprovadamente superficial, não linear, direcionada para títulos e resumos e conduzida por links. Leem-se as primeiras frases dos parágrafos, à medida que o texto é rolado pela página, seguindo-se mentalmente a forma imaginária de um F na tela do computador. O estilo de leitura aprofundada e compenetrada está ficando para trás, e a leitura dinâmica/superficial está-se tornando a forma dominante.
Nossos circuitos neurais foram criados e desenvolvidos para funcionar com atenção direcionada. À medida que navegamos na internet, engajando-nos em multitarefas e praticando leitura dinâmica, nossa mente plástica se torna mais adepta dessa prática. Os especialistas indicam que aumentar nossa habilidade de desempenhar multitarefas na verdade compromete e afeta nossa habilidade de pensar com profundidade e criativamente. A internet está ampliando nossa capacidade visual e espacial, mas ao mesmo tempo está enfraquecendo nossa capacidade de processamento profundo, análise indutiva, pensamento crítico, imaginação e criatividade. A internet está nos fazendo mais inteligentes somente em seus termos. Se considerarmos a inteligência de maneira mais ampla e mais tradicional, se pensarmos mais em termos de profundidade do que somente de velocidade, nós chegaremos a uma conclusão bem diferente e consideravelmente mais sombria.
Há um dito popular que apregoa que “devemos ter a resposta ou então saber onde encontrá-la.” A internet nos ajuda com a segunda opção e nos atrapalha com a primeira. O Google, a maior empresa de tecnologia do mundo e a marca mais valiosa do planeta (esta empresa surgiu logo ali em 1998 – sua história está relatada em seu site não por ano, mas mês a mês), fatura em cima da quantidade de cliques em sua página na internet. Seu contrato com seus anunciantes estabelece cobrança de acordo com o número de cliques dos internautas. Concluímos, portanto, que o Google tem interesse econômico que cliquemos o máximo possível. Uma vez que cada clique representa uma quebra em nossa concentração, uma interrupção em nossa atenção, eles inviabilizam a leitura lenta e profunda. Na verdade, o negócio do Google é a distração. A propósito, depois de lançar-se na digitalização visual de todas as ruas do mundo, o mais novo e ambicioso projeto do Google é digitalizar todos os livros do mundo e se tornar a maior livraria do planeta (com toda a distração, fragmentação e infinitos hyperlinks que o mundo digital pode oferecer).
A memória em desuso
Em 1512, o humanista Desiderius Erasmus estudou as conexões entre memória e leitura. Em sua opinião, memorização era o primeiro passo para o processo de síntese, o processo que leva ao entendimento mais profundo e pessoal de uma leitura. Ele dizia que a memorização não era um ato mecânico e automático, longe disso. Era uma atividade que envolvia toda a mente, e requeria criatividade e julgamento.
Sêneca usava uma metáfora botânica para descrever a memória – as abelhas e os favos de mel. Esses insetos coletam vários e diversos néctares e os armazenam em compartimentos separados, transformando-os em uma única substância. Mais do que uma “gaveta”, a memória é um cadinho.
Com o avanço do computador, nossa memória está sendo substituída pela memória artificial, levando toda a humanidade a desistir de lembrar qualquer coisa (por exemplo, de quantos números de telefone você pode se lembrar?). A era da informação está nos levando a saber menos e nos convencendo de que memorizar ou saber de cor (de coração) é uma perda de tempo. A memória já foi considerada tão importante que os gregos antigos criaram um deus para representá-la – mnemosine, a deusa da memória. Pensadores do século XIX diziam que a arte de lembrar é a arte de pensar. A memória não só perdeu sua divindade, como está a caminho de perder sua humanidade.
Devido à neuroplasticidade do cérebro, quanto mais usamos a internet, mais treinamos nossos cérebros a ser distraídos, adeptos do esquecimento e ineptos para lembrar. Assim como ocorreu com Nietzsche, que ao adotar a máquina de escrever ao final de sua carreira experimentou interferências em seu processo de criação intelectual, toda ferramenta ou tecnologia que o homem desenvolve e utiliza exerce certa influência sobre ele. Nós moldamos a tecnologia para atender uma necessidade e depois ela nos molda. Assim como um martelo em nossas mãos se torna mentalmente uma extensão da nossa mão, ou como um binóculo se torna uma extensão dos nossos olhos, pelos quais nossa mente enxerga novos horizontes, assim é com todas as tecnologias que utilizamos. Nós forjamos nossas ferramentas e depois elas nos forjam. Os exemplos são inúmeros – a máquina de costurar, o arado, o carro etc. Como efeito colateral, a ferramenta nos afasta do mundo físico real. O preço que pagamos para utilizá-las chama-se alienação, em um certo sentido.
Toda ferramenta carrega em si ganhos e perdas. O mesmo ocorre com os programas de computador. Os experimentos mostram que nós os programamos e depois eles nos programam. Quanto mais as pessoas dependem de auxílio direto de um software, menos engajadas na tarefa elas ficam e menos elas aprendem (veja os caixas dos supermercados, por exemplo. No passado, eles recorriam apenas a sua agilidade mental para formular o troco. Hoje, se não tiverem a caixa registradora para fazer os cálculos, não conseguem concluir a compra).
Testes demonstraram, ainda, que não é somente o pensamento reflexivo que precisa de uma mente calma e atenta. A empatia e a compaixão também. Descobriu-se que emoções nobres como empatia e compaixão emergem em nós através de um processo neural naturalmente lento. Precisamos de mais tempo e reflexão para reagir a situações com dimensões morais e emocionais. Os testes indicaram que quanto mais distraídos estamos, menos capazes somos de experimentar empatia, compaixão e outras emoções. Podemos concluir, portanto, que à medida que a internet reprograma nossos caminhos neurais e diminui nossa capacidade de concentração, ela pode estar alterando a profundidade das nossas emoções, bem como dos nossos pensamentos.
Compilado e adaptado por Paulo Roberto da Silva do livro “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”, Editora Agir