Alguns benefícios da tecnologia digital todos conhecemos, ainda que intuitivamente. As longas esperas em filas de banco, inclusive em terminais eletrônicos, que antes tínhamos de enfrentar para pagar contas e realizar consultas e transferências, são coisas do passado, já que hoje tudo isso pode ser feito de um dos muitos aparelhos eletrônicos que gravitam ao nosso redor. Ou seríamos nós que gravitamos ao redor deles? A possibilidade de contatar pessoas em qualquer esquina ou beco do planeta, ou de rastreá-las pelas redes sociais, e de estar permanentemente sendo alimentados com notícias transmitidas em tempo real, o tempo todo, de todos os lugares e culturas, deixa-nos a impressão nada ilusória de que, de fato, o mundo se apequenou.
E a vida se tornou mais fácil. Muito mais. O ingresso para o cinema pode ser garantido via smartphone, enquanto dirigimos para o shopping mais próximo; as catracas do metrô, se preferirmos, já podem obedecer a um simples comando desses aparelhos, que também funcionam como uma bússola moderna, oferecendo localizações precisas a pilotos e motoristas. O aumento das compras pela internet cria uma nova relação entre mercadoria e consumidor. Tudo ou praticamente tudo está na rede: produtos, serviços, conhecimentos, entretenimentos, pessoas, relações…
Há pelo menos cinco décadas, a inovação digital vem mudando a forma como o mundo muda. No entanto, segundo Silvio Meira (professor de Engenharia de Software da Universidade de Pernambuco), a verdadeira revolução digital ainda nem começou; esses primeiros 50 anos são só a fase de criação de bases. Devemos nos preparar para um tsunâmi digital de mudanças ainda mais radicais, sobretudo com reflexos na economia. No longo prazo, afirma Meira, todo mundo vai programar, e isso vai causar um aumento sem precedentes no impacto das ondas de inovação de informática.
Parafraseando um prognóstico que ouvi certa vez sobre as repercussões da vida moderna nos relacionamentos conjugais, mesmo que não pratiquemos as coisas preditas no cenário descrito anteriormente, elas certamente nos praticarão. Ou seja, vivemos um tempo histórico em que as tecnologias em geral desconhecem limites e avançam pelo planeta e fora dele à velocidade da luz. Nicholas Carr, autor de “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros” (ver matérias de capa), afiança-nos: o futuro não será mais como era antigamente.
Sem deixar de reconhecer o bem que este desenvolvimento tecnológico tem trazido para toda a humanidade, Harold Walker (Revista Impacto, edição 80) chama a atenção para o tamanho do estrago que esse mesmo avanço provoca. De um lado, possibilidades inimagináveis nos campos da saúde e expectativa de vida; do outro, um cenário assustador de ameaça à própria raça humana. Os desdobramentos da escolha pela árvore do conhecimento do bem e do mal parecem estar atingindo o seu clímax em nossos dias.
Sim, o progresso da ciência tem a sua caixa-preta. O holocausto e as bombas atômicas que o digam. No entanto, os males advindos da abertura da caixa de Pandora da ciência ganham contornos ainda mais apocalípticos quando olhamos para a degradação ecológica. Podemos ficar num único exemplo nacional para termos ideia do tamanho da destruição: nos últimos 40 anos, segundo o cientista Antonio Nobre, a floresta amazônica teve o equivalente a mais de 12 mil campos de futebol desmatados por dia, mais de 500 por hora, quase 9 por minuto. Para a jornalista Eliane Brum, a Amazônia dá forma ao momento da História em que a humanidade deixa de temer a catástrofe para se tornar a catástrofe. Há algo de proporções incalculáveis acontecendo enquanto nos mantemos cegos e surdos. Essa alienação, segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, recorrendo a uma figura utilizada pelo pensador alemão Günther Anders, é um fenômeno supraliminar. A ciência já mapeou aqueles fenômenos considerados abaixo da linha da percepção – subliminares – que alguém ouve e vê, mas não sabe que ouviu e viu. Nós, no entanto, estamos às voltas com algo inédito, o supraliminar. Trata-se de eventos tão descomunais, como essa crise climática, por exemplo, que, de tão grandes, não se consegue ver nem imaginar.
Esta edição do jornal GrupoNews atém-se, especificamente, a alguns efeitos colaterais das tecnologias digitais, responsáveis, entre outros aspectos, por uma nova forma de adicção, comparada à do álcool e das drogas: o vício em internet e em jogos eletrônicos on-line. Paulo Roberto da Silva, em um dos artigos de capa, mostra como a Coreia do Sul, a capital digital do mundo, tornou-se o país com maior quantidade de viciados em internet e em games eletrônicos (um número superior a 2 milhões de pessoas) e o primeiro a criar um programa de tratamento médico para dependentes cibernéticos (hoje já são mais de 150 clínicas especializadas). Essa nova conjuntura social protagonizou, de forma absurda neste país, a tragédia envolvendo a pequena Sarang, cujos pais, por sofrerem de dependência crônica da internet e estarem imersos no mundo paralelo dos games, negligenciaram ao bebê cuidados básicos de alimentação, levando-o à morte por desnutrição.
A mente humana está sob um ataque perigoso e silencioso patrocinado pelas tecnologias digitais. Estas, como adverte Nicholas Carr, não somente estão mudando nosso estilo de vida e formas de comunicação, mas também os nossos cérebros e a maneira como raciocinamos, percebemos e sentimos. Nós moldamos a tecnologia para atender a uma necessidade e, em seguida, ela nos molda. Um exemplo disso são os efeitos da migração da nossa leitura no texto impresso para aquela realizada na tela de um computador: altera-se não somente o modo como interagimos com o texto, mas também o grau de atenção e a profundidade de nossa imersão nele. A internet, ao nos engajar em multitarefas que afetam, segundo Carr, nossa habilidade de pensar com profundidade e criativamente, está forjando a geração mais distraída e desconcentrada da História. “Trata-se de um verdadeiro ecossistema de tecnologias de interrupção”, declara o autor.
A exemplo de executivos de companhias tecnológicas, que limitam o acesso de seus filhos a eletrônicos, é preciso fazer algo. As reflexões que os textos de capa aqui propõem talvez sejam um bom começo para nos conscientizarmos desta epidemia mundial de distração e superficialidade que assola o planeta. Uma ótima leitura!