Na última edição (Grupo News nº 76, julho de 2013), refletimos sobre a necessidade de uma nova relação com o trabalho, levando em consideração a possibilidade de que nossas atividades profissionais terão continuidade e se integrarão à realidade do Reino Milenar. Vimos que o tempo presente é o momento de aprendermos muitas qualidades e valores que serão exercidos em plenitude no tempo vindouro. Essa maneira de enxergar o Milênio, sem uma descontinuidade em relação ao que nos foi confiado antes disso, aumenta nossa responsabilidade em discernir aquilo para que fomos criados. A propósito, você saberia dizer para que sem lançar mão de conhecidos chavões como “para a glória de Deus”?
Lamentavelmente a religião nos condiciona a subvalorizar as ocupações que constroem e mantêm o mundo em que vivemos. Muitos chamam Babel à maioria das realizações feitas por mãos humanas. Perguntados sobre seu trabalho, não poucos crentes dizem algo como: “Na vida secular, eu sou vendedor. No reino de Deus, pastor.” Ou: “Na vida secular, eu sou eletricista. Na igreja, professor de escola dominical.” Fica evidente a noção de descontinuidade. O mundo, juntamente com todos os feitos humanos que não exalam o cheiro da religião, acaba sendo enxergado como um artigo provisório, algo que não sobreviverá ao Milênio. As descobertas e os inventos, as grandes obras artísticas e do pensamento, os estudos sobre o psiquismo e o comportamento humano, a diversidade cultural espalhada pelo planeta, tudo isso parece ser visto por muitos crentes com desprezo, como produção de segunda categoria, algo paliativo, um esboço de humanidade enquanto se espera pela instauração do projeto definitivo.
A vida de Tolstói, um dos maiores escritores de todos os tempos, ilustra bem essa dificuldade de conciliar talento e realizações humanas com a Luz que ilumina a todo homem. Ele entrou em crise num determinado momento de sua vida, chegando a considerar tudo o que até então havia escrito como tagarelice de final de feira. O autor de “Guerra e paz” e “Ana Kariênina” esteve à beira de cometer um suicídio intelectual, produto do calor dos conflitos existenciais que lhe sobrevieram. Há que se destacar, no entanto, que a espiritualidade de suas produções religiosas (os escritos que se seguiram à crise) nem de longe se compara àquela que transpira das páginas de seus grandes escritos literários.
Sob esse mesmo ponto de vista, todas as belezas da arquitetura e todas as benfeitorias da engenharia, assim como todos os projetos de melhorias sociais, parecem desperdício, afinal fazem parte de um sistema condenado chamado “Babilônia”, prestes a ser destruído. Assim, a história humana, com todo seu potencial criativo cuja fonte muitos irrefletidamente atribuem ao diabo, se reduz a um passatempo ilusório, a um desvio de rota prestes a despencar no abismo assim que seu tempo se cumprir. Sob influência dessa cosmovisão, tudo o que se faz debaixo do sol não tem continuidade; é um parêntese apenas tolerável enquanto o “fim do mundo” não introduz a verdadeira realidade.
Nesta edição, queremos continuar refletindo sobre as implicações da Luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem (Jo 1.9). Com que luz, especificamente, fomos iluminados? Em termos bíblicos, qual ou quais talentos nos foram confiados? Reconhecer os próprios dons é essencial para compreender a vocação. Os pais – se de fato forem pais – têm um papel importante a cumprir nessa identificação. Sem eles, seguiremos realizando tarefas sob os critérios e promessas do mercado, inclusive o religioso, e inadvertidamente aderindo a chamados que Deus nunca nos dirigiu.
Ao propormos o assunto dos dons e da vocação, pretendemos fazê-lo como algo inerente ao funcionamento de um corpo. Ou seja, um corpo tem muitos membros e órgãos, cada qual com sua função específica; todos, porém, interligados e a serviço do coletivo. Elementar assim, como a Bíblia há muito nos ensina.
Pensando no funcionamento da igreja contemporânea e considerando a diversidade de operações planejada por Deus, quantos membros essa coletividade de irmãos em Cristo tem? Se formos honestos, devemos admitir que há muitos membros repetidos e outros tantos sem função. Pensando um pouco além da igreja, quando alguém deixa de resplandecer a Luz com a qual foi iluminado, ou seja, quando não discerne seu dom e vocação e consequentemente não os coloca a serviço de sua geração, o mundo fica empobrecido, e um aspecto da beleza de Cristo, escondido.
É preciso, portanto, deter esse empobrecimento do mundo e dos dons, bem como a morte da vocação. Nesse sentido, há muitas ações de incentivo que estão ao alcance da mão e dos recursos pessoais. Basta praticá-las.
Continuemos evangelizando, ensinando as Escrituras, enviando missionários, publicando nossos periódicos, denunciando profeticamente o pecado, compondo e executando nossas músicas, realizando nossos eventos… Sim, trabalhemos pelo reino. Mas façamos isso também consertando carros, construindo estradas, ensinando geografia e matemática, atendendo no comércio, nos envolvendo com os problemas de nosso bairro, preservando o ecossistema, dirigindo sem agressividade, consumindo somente o necessário, afinal esta ainda é a Terra que as mãos do nosso Pai amorosamente modelaram e este ainda é o homem a quem Deus, desde o princípio, confiou tarefas. E por ambos Deus continua tendo apreço. Façamos tudo quanto nos vier à mão para fazer (Ec 9.10), cada um naquilo em que foi chamado, entretanto nunca desconectados de outros que também foram chamados para realizar algo.