Jesus forneceu, entre outros, um aspecto inconfundível que distingue os filhos de Deus, mesmo daqueles que exteriormente procuram imitá-los: ao contrário dos servos, os filhos ficam na casa para sempre (Jo 8.35). Antes, porém, é necessário que o Filho os liberte, introduzindo-os na comunhão de seu Pai, sem o que não gozarão da peculiar intimidade da casa (v.36).
Os filhos, pouco a pouco, vão se parecendo mais com o Pai e passam a querer as mesmas coisas que ele. Mas tal identificação vai além de uma conformação exterior. O irmão do filho pródigo, o filho mais velho da conhecida parábola, pode sugerir-nos, a princípio, uma semelhança com seu pai. No entanto, bastou surgir ocasião para que sua verdadeira condição se mostrasse, a de perdido em sua própria casa. Sem nunca ter ficado longe de seu pai, o primogênito distanciou-se consideravelmente dele.
Mas seu distanciamento não é algo que, de evidente, salta aos olhos, afinal, de acordo com Henri Nouwen (“A volta do filho pródigo”, Paulinas, 2004), ele fez tudo o que devia: “Foi obediente, cumpridor de suas obrigações, respeitador das leis e trabalhador. As pessoas o respeitavam, admiravam-no, elogiavam-no e consideravam-no, igualmente, um filho modelo. Aparentemente, o filho mais velho era sem defeitos” (p. 78; ênfase acrescentada). Não seria improvável que alguém com tal currículo passasse pela vida confundido para sempre com um filho. Talvez fosse até risível dizer que semelhante pessoa devesse também, como seu irmão mais novo, fazer o caminho de volta para casa. Mas Henri Nouwen prossegue: “(…) quando se defronta com a alegria do pai pelo filho que volta, surge uma onda de revolta que explode, chegando à superfície. De repente, aparece ali nitidamente visível uma pessoa ressentida, orgulhosa, má, egoísta; alguém que permaneceu profundamente escondido apesar de estar crescendo e se fortalecendo ao longo dos anos” (p. 78).
O desfecho da história mostra que a fachada de filho não sobreviveu às decorrências do retorno do irmão. A aparência desmoronou. Debaixo dos escombros, a cena bíblica mostra alguém escravizado por muitos sentimentos e inclinações bem diversos dos de seu pai. Ao contar esta história, Jesus espelha para os religiosos que o cercavam a propensão destes a fechar a porta do reino de Deus a meretrizes e cobradores de impostos, ao mesmo tempo em que se julgavam a medida legal e moral de todas as coisas. Jesus chegou a advertir alguns deles sobre o equívoco de se considerarem filhos de Abraão, quando suas obras passavam bem ao largo daquelas que o Antigo Testamento testemunha a respeito do patriarca. Foi exatamente este o contexto que levou Jesus a explicitar a seus interlocutores o quanto precisavam de libertação. Consideravam-se eleitos, filhos, mas lhes faltava a relação que o Filho viera para revelar.
A vida de Jesus foi um constante convite a que seus ouvintes se tornassem membros da família de Deus, filhos portanto, e não servos de uma tradição estéril e do mero cumprimento de ordenanças e rituais. Sem a participação na família de Deus, Jesus deixava-lhes claro que ficavam privados da abundância da casa do Pai, do caráter que ele imprime naqueles que dele se aproximam. No máximo, poderia lhes restar um simulacro de filiação, ou seja, uma aparência destituída de substância e de identificação com o Pai, como vimos ilustrada no comportamento do irmão do filho pródigo.
Jesus veio para que recebêssemos o espírito de adoção e nos tornássemos tão filhos quanto ele. Mas teve que enfrentar um adversário encarniçado no coração dos homens: a religiosidade, cuja origem recua à costura do primeiro avental, no Éden, manufatura que visava tornar seu fabricante aceitável diante do Criador. Glênio Paranaguá, num livro dedicado ao assunto (“Religião: uma bandeira do inferno”, Editora Ide, 2003), traz uma definição esclarecedora: “Na religião, o ser humano tenta subir uma escada de méritos e boas ações, para reencontrar-se com Deus no último degrau. É uma tentativa do gênero humano de se fazer digno e credor de um relacionamento satisfatório diante da divindade. A religião produz um sentimento de conquista, e a pessoa se sente gratificada pelo seu desempenho cheio de esforço. (…) Como uma droga, a religião vicia e mantém os sujeitos contagiados com suas propostas sedutoras” (p. 18).
Além disso, ao dar destaque ao que é aparente, a religião afasta seus seguidores da verdade. Não foi por outro motivo que Jesus se mostrou tão enfático ao evangelizar aqueles que pretendiam ser discípulos: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Somente a verdade, em toda a sua nudez, pode nos salvar de nossos embustes e imposturas. Jesus, a Verdade, não deu tréguas para toda hipocrisia que se escondia sob um disfarce de piedade. Foi assim que disparou contra os fariseus: “Ai de vós que sois como as sepulturas invisíveis, sobre as quais os homens passam sem o saber!” (Lc 11.44). Quem ouviu tal reprimenda sabia exatamente o que Jesus queria dizer. Como era considerado imundície para o judeu tocar cadáveres e tudo o que a eles se associasse, os túmulos recebiam uma necessária providência que os tornava suficientemente salientes: eram caiados de branco e, assim, ficavam visíveis. Uma sepultura sem tal sinalização – logo invisível – poderia se tornar uma armadilha para os desprevenidos. Jesus usou essa ilustração para mostrar como aqueles religiosos costumavam ocultar a verdade, muitas vezes até de si mesmos, sobre sua real condição. Com isso, os que com eles conviviam seguiam iludidos, crendo estar diante da espiritualidade em pessoa, da perfeição moral, da ausência de conflitos e de fraquezas.
Paulo, em 1 Tessalonicenses 5.22, exorta seus leitores a fugirem da aparência do mal. Já o Senhor Jesus, em Lucas 11.44, como que está a nos falar para que fujamos de um outro tipo de aparência: a aparência do bem. A forma ou a aparência do mal devem, sim, ser evitadas, não há dúvidas. Mas, igualmente, precisamos ler as entrelinhas de Jesus na admoestação aos fariseus e fugir, com a mesma determinação, da aparência do bem.
Eis o “marco zero” da bondade e da justiça: a fuga da aparência do bem. Que concorrente poderia ser mais perigoso para o florescer da bondade e da justiça em nossos corações do que uma mera aparência dessas virtudes? E, no entanto, desde o Éden, há uma teimosia obstinada no coração do homem para encenar o bem se este não se encontra presente. Faríamos muito melhor figura àqueles que quedam impotentes e culpados diante da dificuldade em praticar o bem, se ousássemos admitir a verdade do nosso íntimo. A tentativa, no entanto, de dissimular e tornar invisíveis nossas insuficiências é mais lenha para o fogo da religião, sob cujas cinzas se penitencia uma multidão de culpados sinceros que não conseguem, por mais que se esforcem, atingir a “altura” que acreditam terem visto em muitos de nós. É destas mesmas cinzas, produto da mesma religião, que se levantam outros tantos, não da água e do Espírito, como ensinou Jesus, mas da terminante recusa em se apresentarem sepultados, escancaradamente sepultados. Essa negação toma vulto quando se deixa de acreditar que a única saída para a natureza humana – a única – é uma intransferível dependência da ressurreição.
Filhos, fugi da aparência do bem, aprendei com o Filho e voltai, dia a dia, para casa!