Este artigo é o quarto de uma série que discutirá alguns aspectos complexos do divórcio, uma prática antiga que afeta atualmente a maioria das famílias.
Nos artigos anteriores, refletimos acerca dos aspectos gerais de sofrimentos causados pelo divórcio dentro dos relacionamentos contemporâneos. Enfatizamos que os termos “casar-se” ou “casamento” normalmente são usados para se referirem às diferentes cerimônias ou eventos de oficialização da vida a dois ou à condição a partir daí. Reiteramos que as consequências de uma separação conjugal também afetam quem vive junto sem estar “casado”. O recente e badalado “casamento” ocorrido na família real britânica ilustra bem isso, pois o jovem casal já coabitava (“namorava”) há anos. Aproveitemos esse exemplo para supor como poderia ter sido a história deles, assim como a de tantos outros casais em nossa sociedade, se tivessem gerado filhos e decidissem romper o relacionamento antes de se “casarem”.
Possivelmente o leitor já sabe aonde queremos chegar. É a respeito do sofrimento de filhos de uniões conjugais desfeitas (oficiais ou não) que falaremos mais a partir daqui. Os adultos podem ter acesso a recursos emocionais para superar perdas geradas por rompimentos afetivos, mas isso é coisa difícil para a criança que, na maioria das vezes, não quer se separar dos pais.
Para refletir sobre esse lado mais triste das separações conjugais, continuaremos apresentando narrativas da Drª. Wallerstein na obra “Sonhos e realidade no divórcio: marido, mulher e filhos dez anos depois”, além da nossa experiência na área. Recorreremos também a outro livro da mesma autora, “Filhos do divórcio” (editora Loyola, 2002). Nele estão sinteticamente colocadas informações sobre as vidas de mais de 70% dos 131 filhos (todos já adultos) que participaram da pesquisa desde o início e foram acompanhados por mais de 25 anos depois do divórcio de seus pais. Outro diferencial do livro é a comparação que ela faz com algumas experiências de 44 crianças e adolescentes que foram vizinhos e amigos do grupo estudado, filhos de 27 casais que não se divorciaram, ainda que muitos deles também tivessem motivos fortes para fazê-lo.
Relembremos que o objetivo inicial do estudo da Drª. Wallerstein era o de confirmar se os sofrimentos causados pelo divórcio nas crianças realmente duravam no máximo dois anos, como naquela época e ainda hoje muitos acreditam. Vejamos então qual é a realidade dos fatos na maioria das famílias, quando diante das crises conjugais são colocados em jogo diferentes interesses de pais e filhos.
Filhos pequenos como prioridade dos pais
O Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”) é considerado uma referência positiva mundial, principalmente porque a maioria dos países acredita que essa lei é cumprida na totalidade. Entre suas diretrizes, o “ECA” promulga que em todos os setores da sociedade a criança e o adolescente devem ter atendimento prioritário e de qualidade, ou seja, algo diferente do que estamos acostumados a ver. Especificamente sobre a família, diz o início do Artigo 19 que “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família…”
Diferente dessa determinação, nas escolas onde temos trabalhado desde 1990, ano após ano é cada vez maior o número de crianças vivendo com apenas um dos pais (quase sempre a mãe), com avós ou outros parentes, além daquelas recolhidas em casas lares ou abrigos (os orfanatos, na linguagem politicamente incorreta). Portanto, viver sob um mesmo teto com pai e mãe biológicos emocionalmente saudáveis não é a realidade da maioria das crianças e adolescentes brasileiros. Os interesses e necessidades dos pais que decidem separar-se são distintos daqueles dos filhos, ainda que poucos adultos reconheçam isso.
Ter os filhos como prioridade significa considerá-los em primeiro lugar quando o casal vai tomar uma decisão que os afeta. De nossa parte, por exemplo, não conhecemos nenhuma história de pais que partilharam adequadamente com os filhos a intenção de separar-se, preocupados com os sofrimentos, sentimentos e pensamentos deles. Embora seja difícil o adulto enxergar isto, a prática comum é cuidar primeiramente da felicidade pessoal e supor que as decisões para buscá-la atenderão também aos filhos. A triste realidade é que essa lógica não corresponde à verdade e talvez essa tenha sido uma das principais descobertas da pesquisa de mais de 25 anos da Drª. Wallerstein com os filhos do divórcio. Quando os pais resolvem romper o relacionamento, quase sempre estão em busca de realizações pessoais. De alguma maneira e com razões consideradas justificáveis, eles ignoram que a maioria das crises relacionais pode ser superada, trazendo crescimento emocional para os envolvidos.
Filhos esperam a superação das crises e não o divórcio
Antes de continuar, registramos que temos percebido honestidade na expectativa de alguns pais que tomam a difícil decisão de separar-se como sendo a melhor para os filhos, e às vezes para livrá-los de abusos. Inclusive, essa possibilidade é proposta (ensinada) como a única na maioria das novelas, filmes, seriados e até em livros e revistas.
Controladores ou mantenedores do capitalismo consumista, incluindo religiões, contam muitas mentiras sobre o divórcio e convencem de que ele é bom. Os inevitáveis sofrimentos gerados pelas separações são apresentados como se fossem um mal-estar físico passageiro, facilmente curável e não causando grandes consequências. A possibilidade de um novo e melhor relacionamento sempre é apresentada, funcionando às vezes como um tipo de anestésico emocional. No entanto, à medida que passam meses ou anos, a dura realidade machucará muita gente, principalmente os filhos. Sobre esse contexto, a Drª. Wallerstein registra que
Com frequência o divórcio leva a um colapso parcial ou total, durante meses e às vezes anos depois da separação, da capacidade de o adulto ser pai ou mãe. Envolvidos pela reconstrução de suas próprias vidas, mães e pais estão preocupados com mil e um problemas que podem cegá-los para as necessidades dos filhos. (WALLERSTEIN, 2002, p.16)
Ela insiste que para a criança a separação conjugal não é uma experiência de efeitos passageiros, mas fonte de sofrimentos incalculáveis. Nesse aspecto as crianças têm razão quando esperam dos pais um encaminhamento diferente para as crises que não seja o divórcio. A separação daqueles que a princípio permaneceriam juntos para cuidar deles em qualquer circunstância gera desestabilizações de toda ordem em seu desenvolvimento, com muitas e novas dificuldades no cotidiano.
A lógica e a experiência comprovam que a vida conjugal saudável cria a necessária estrutura a partir da qual os filhos irão fazer longas amizades, estudar e desenvolver-se nos diferentes aspectos da existência. A separação, ainda que os (ex)cônjuges consigam manter um contato amigável, raramente promoverá encontros regulares para partilhar estratégias de como criar os filhos (WALLERSTEIN, 2002, p.63). Essa realidade observada pela autora é uma das principais causas de a maioria dos filhos participantes de seu estudo afirmar, já como adultos e depois de 25 anos, que os pais poderiam ter tentado saídas diferentes da do divórcio.
No caso das crianças pequenas, a separação conjugal trará crises bem específicas a esses seres em início de desenvolvimento e indefesos. A perda do relacionamento diário de qualidade com um dos pais, quase sempre o pai, gera ansiedades e outros distúrbios emocionais, juntamente com a expectativa de que o problema será solucionado. A autora percebeu que:
Mesmo que tivesse havido um segundo casamento, elas se apegavam à fantasia de uma reconciliação, baseadas na lógica de que ‘se já se divorciaram uma vez, podem fazê-lo de novo’. Após os primeiros cinco anos, apresentavam-se bastante irritadas com os pais por darem prioridade aos assuntos dos adultos em detrimento de suas necessidades. Poucas crianças eram compreensivas ou entendiam realmente o porquê de seus pais terem se divorciado, mesmo quando o motivo parecia óbvio. (WALLERSTEIN, 1991, p.20)
Há uma quantidade enorme de relatos parecidos com esse durante os anos que se seguiram. Ainda que a maioria dos pais continuasse tentando novos e melhores relacionamentos, os pequeninos não desistiam do sonho de vê-los juntos novamente. Nesse processo gasta-se bastante energia emocional e, consequentemente, surgem dificuldades que as crianças passam a ter em outras áreas e relacionamentos envolvendo o cotidiano, inclusive na escola. Grande parte desse mesmo grupo que, no início da pesquisa, não tinha problema com aprendizagem passou a ter. Em vários casos, isso repercutiu e afetou diretamente o futuro profissional ou acadêmico deles, pois não puderam mais contar com pais presentes e interessados em suas vidas. Ligado a isso, a autora faz uma reflexão sobre o filme “ET” como sendo uma triste ilustração da realidade de muitos lares desfeitos:
O filme retrata um aspecto importante da experiência americana atual: os adultos estão afastados das crianças, enquanto estas se decepcionam com eles. Os adultos são retratados como pessoas incompetentes e pouco disponíveis; encontram-se tão ocupados, tão infelizes e tão absortos consigo mesmos, que não podem ser úteis. Assim, tanto a criança alienígena como a humana têm de encontrar o caminho da sobrevivência contando apenas com os próprios recursos e fantasias. (WALLERSTEIN, 1991, p.51)
Embora ela se refira aos norte-americanos, o contexto brasileiro não é diferente. Por mais que os (ex)cônjuges pensem estar fazendo o melhor para os pequeninos, a maioria destes terá muita dificuldade devido às consequências da separação, seja com o estresse do envolvimento em duas ou mais famílias, seja com o distanciamento físico e afetivo de um dos pais, seja com os desdobramentos disso. A Drª. Wallerstein (1991, p.39) também descobriu que em muitos casos a felicidade adquirida pelos adultos com novos relacionamentos não é transferida para as crianças, aumentando ainda mais o sofrimento delas, como a experiência do abandono, às vezes até pelos avós, e a “pungente e dolorosa” sensação de solidão (WALLERSTEIN, 1991, p.41).
Essa é a triste realidade que normalmente não aparece nas novelas e filmes. As crianças, principalmente as pequenas, precisam de muitos tipos de cuidados raramente iniciados ou mantidos pelos pais a partir das separações conjugais. Marido e mulher que não aprenderam ou não quiseram desenvolver juntos uma parentalidade saudável terão muita dificuldade de praticá-la sozinhos com os filhos.
Talvez seja esse um dos motivos de Jesus Cristo ter afirmado que é preciso se tornar como uma criança para entrar no Reino de Deus (Mt 18.3). A menos que esteja sob forte influência negativa do adulto, para a criança é impossível um conflito não ser resolvido, muito menos a ideia de rompimento definitivo de relacionamentos. Essa é uma das importantes lições a partir das práticas de Cristo, possível de se aprender com as crianças. E poderemos sempre contar com a milagrosa graça Dele que, diretamente ou através dos verdadeiros cristãos, aponta caminhos para a solução de conflitos conjugais, possibilitando ao casal redescobrir diariamente a beleza da vida a dois.
A Drª. Wallerstein, embora não se declare cristã, alimenta a esperança de as pessoas aprenderem a evitar o divórcio, para o bem de si mesmas e dos filhos, construindo relacionamentos sadios diariamente. Diz ela:
Precisamos aprender como e por que as coisas evoluíram tão mal entre casais que tiveram filhos e cuja maioria nos disse ter se casado por amor. Precisamos aprender a diminuir a infelicidade, a raiva e a decepção que se encontram tão disseminadas nas relações entre homens e mulheres. É preciso aprender mais sobre o namoro, o casamento e o segundo casamento, e sobre o que faz os casamentos serem bem-sucedidos. (WALLERSTEIN, 1991, p.404)
O amor incondicional revelado em Jesus Cristo nos dá bases corretas e sólidas para o namoro e o casamento. As crianças pequenas, que não deveriam sofrer por coisas evitáveis pelos adultos, ficarão gratas futuramente se, em nossa conjugalidade, vivermos e ensinarmos a prática desse amor. Assim elas terão grandes possibilidades de construir famílias ainda melhores do que as nossas.