Conhecendo o dever
Dou graças a Deus pela vida de minha mãe. Por meio dela, o dever moral se apresentou encarnado a mim: com voz, cheiro, toque, cuidados mil, renúncias e honestidade levada, por vezes, às últimas consequências. Sua vida escreveu leis em meu interior escavando sulcos profundos. Uma dessas leis foi “jamais tocar naquilo que é dos outros”. Lembro-me de que quando criança, instigado por alguns colegas, tentei roubar uma barra de chocolate de um supermercado. As circunstâncias da época não colocavam muitos obstáculos para o ato: não havia, ainda, câmeras de vigilância, funcionários destacados para fiscalizar as seções, detectores nas portas de entrada. Era só usar uma roupa um pouco mais larga e prender o doce ao elástico do calção. Foi o que fiz, e já me encaminhava para a saída, sem notar ao redor qualquer olhar de desconfiança por parte dos funcionários. Mas havia um fiscal dentro de mim. O regulador não estava fora; era de dentro que o alarme soava. Uma voz de timbre e inflexão conhecidos disparava estridentemente em minha mente: “Nunca mexa no que é dos outros. Não pegue nada que não seja seu, nem mesmo uma agulha ou papel de bala”. Eram os ensinamentos de minha mãe que se sobrepunham àquele desejo de pilhar o supermercado. Não deu, devolvi disfarçadamente o doce à prateleira.
Antes disso, já havia passado por uma experiência de receber de “presente” um relógio de pulso de um colega suspeito, quando voltava para casa, ao final da aula de certa sexta-feira. No fundo, eu sabia, embora ainda pouco malicioso, que a procedência do relógio não era das melhores. Mas a aquisição era grande demais para eu dar ouvidos a algum tipo de acusação moral da consciência. Fui chegando em casa e logo exibindo o mimo. Onde tinha conseguido? Ora, achara na rua, disse para minha mãe. Ela fez aquela cara de desconfiança que eu conhecia de longa data. Mas por enquanto foi só. O prazer da novidade e alegria por possuir um relógio que marcava a data do calendário e tinha pulseira prateada não durou muito. Acordei no sábado de manhã – do lado do travesseiro o relógio – com menos entusiasmo. Por algum tipo de esforço mental, eu tentava adivinhar de onde teria vindo aquele objeto que o suspeito colega tão gratuitamente me dera. Por vezes, eu tinha ímpetos de esconder a prenda como se o fato de ele estar à mostra trouxesse automaticamente os olhos oniscientes e inquiridores de minha mãe. O pouco entusiasmo do sábado de manhã tornou-se inquietação no sábado à noite, angústia no domingo de manhã e desespero no domingo à noite. O choro descontrolado não tardou. Minha mãe, naquela oportunidade, escavou ainda mais os sulcos da honestidade na minha alma. Pacientemente ouviu toda a história do “presente” e, sem fazer sermão, trocou de roupa, deu-me a mão e levou-me até a casa do presenteador. Lembro-me de ter saído da minha sob a vinheta do Fantástico, soluçante e envergonhado. Batemos à porta da casa do menino. Seus pais, em roupa de dormir, nos atenderam. Convidaram para entrar. Mas minha mãe era prática, objetiva. Ali mesmo, no portão, cuidou para que tudo viesse às claras: o relógio, então soubemos, tinha sido roubado pelo menino que, desejoso de desviar qualquer suspeita de si, desfez-se do produto, entregando-o a mim. A princípio temeroso pelas represálias deste menino, quando o caso se resolveu e a “bola” foi passada para os pais dele, eu senti o mundo saindo das minhas costas. Voltei para casa quase flutuando. No semblante de minha mãe se lia a sensação do dever cumprido. Como, depois daquilo, eu roubaria chocolates em supermercados?
Descobrindo que o dever não é tudo
Também dou graças a Deus pela vida de meu pai, com quem infelizmente só pude conviver até os 13 anos. Um infarto fulminante nos separou. Sua ausência, ainda hoje, é para mim uma presença viva, de inspiração e de dor. Lembro-me de que meu pai nos acompanhou, a mim e a minha mãe, até a casa do garoto que furtara o relógio, porém o protagonismo, naquela cena, não era dele, mas de minha mãe. Meu pai desempenhou um outro papel na minha vida: ele entreabriu-me a porta dos desejos, dos sonhos. Foi sob a sua “jurisdição” que sonhei ser um craque do futebol e, tanto quanto foi possível, me alimentei dessa aspiração muito mais do que de arroz e feijão. Não é difícil trazer à memória as censuras que minha mãe lhe dirigia: ele era irresponsável, não pensava muito no amanhã, gastava demais. Com isso, ela estava dizendo que meu pai era muito sonhador, descontrolado, não guardava dinheiro, não tinha os pés no chão. Bem, minha mãe podia dizer isso: ela não só tinha os pés no chão; eles estavam plantados. Segundo minha mãe, meu pai tinha perdido muita chance de se dar bem na vida. À época, eu ouvia as brigas deles e não entendia muita coisa. Meu pai era uma espécie de micro-ondas com o qual eu podia manter sempre aquecidos os meus planos de menino. Com sua morte, tive que enterrar boa parte deles. Perdi a inocência, virei homem mais cedo. Mas era incrível: meu pai conseguira fundar em mim muitos ideais. Eu não podia fazer de conta que eles não estavam lá, porque se misturavam a tudo o que me constituía.
Certo dia, uma crônica de mote natalino que meu pai havia escrito caiu em minhas mãos. A produção foi de uma época em que ele estava longe, morando sozinho, a mais de mil quilômetros de distância, em virtude de um novo emprego que exigia de nós essa separação temporária. Sem a família, e também numa fase de abstinência da bebida, depois de se afundar até o pescoço nela e quase perder tudo, era o primeiro fim de ano em que não podia nos aconchegar nos seus braços e dar aquelas conhecidas manifestações efusivas de alegria. Na véspera do natal, retornando da jornada de trabalho que, por conta própria e por não ter a família com quem comemorar, decidiu estender, deparou-se com um garoto sem-teto sentado na sarjeta, a alguns metros da casa onde ele, meu pai, estava morando. A decisão veio enquanto tomava banho. Vestiu-se rapidamente e saiu à procura do garoto. Não foi difícil encontrá-lo. Depois de travar uma conversa de aproximação, levou-o para jantar. Cearam juntos naquela noite de natal. Na volta para casa, chovia abundantemente. Mas meu pai vinha a passos lentos tomando toda aquela chuva e deixando os cabelos, as roupas e os sapatos ficarem encharcados. Ao fechar a porta, ficou um tempo pensando naquela experiência – a crônica dizia –, e se deu conta de que havia algo ainda mais úmido que suas roupas e cabelos: os olhos. De sua alma brotava um rio que faria qualquer tempestade parecer um chuvisco sem importância.
Não tive oportunidade de conversar com meu pai sobre essa experiência, ou não me lembro se o fiz. O fato foi que minha leitura das impressões desse jantar que o deixou com a alma lavada semeou em mim razões para uma vida inteira. Não posso dizer com exatidão, mas hoje compreendo em parte por que escrevo, por que falo como falo, por que desenvolvi uma tese sobre compaixão, por que aprecio tanto alguns escritores, por que estou atrás de um certo tipo de experiência existencial.
O escritor Frederick Buechner afirma que vocação é o lugar onde nossa profunda alegria se encontra com a profunda necessidade do mundo. Meus pais, pela graça de Deus, foram esse ponto de intersecção. Minha mãe representa para mim o dever, a moral, a vida correta, um olhar para as necessidades do mundo. Meu pai, as aspirações, os ideais, o fazer o bem, porém sentindo-se bem, encontrando sentido nisso. Valendo-me dos trilhos que minha mãe colocou, permiti que meu pai me conduzisse além, para uma vida de excelência, ainda que somente esboçada, anunciada, entreaberta.
Desde cedo, mesmo que intuitivamente, fui deduzindo que a vida irrepreensível, ainda que um alvo incrível, não era o fim da estação. Havia algo além dela. Mais tarde descobri que também não era o começo. O reino de Deus tem início quando a justiça da vida irrepreensível é ultrapassada. Deus mora na santidade porque ele vive na Trindade. Ser santo, portanto, é mais que ser irrepreensível. Lamentavelmente, no entanto, poucos conceitos bíblicos são tão mal compreendidos como o da santidade. “Sede santos porque eu sou santo” não é um encargo culpabilizante, mas uma grande libertação em nossa vida. É o Éden de volta. Por que ainda, então, nos contentamos tanto em ser apenas irrepreensíveis, fazendo disso o alvo maior de nossa jornada cristã?
Para além da tábua de mandamentos
Jesus, certa feita, foi convidado a comer na casa de um fariseu (Lc 11.37-44). Como de costume, rompeu protocolos ao não se lavar primeiro antes de tomar assento. Sua atitude, ou a falta dela, causou consternação no anfitrião e deu ensejo a um ensinamento: os fariseus tinham uma santidade cosmética, exterior. Eram irretocáveis quanto aos rituais que sua religião previa, mas conservavam o interior mergulhado na penumbra, impermeáveis aos fundamentos primordiais da Lei (a justiça e o amor), a mesma que julgavam cumprir à risca.
Ora, os fariseus eram observadores rigorosos dos preceitos, o que não escapou à advertência de Jesus: por exemplo, no que dizia respeito ao dízimo, eles ofereciam as primícias até mesmo de cultivos domésticos de mínima produtividade, como a hortelã, a arruda e outras hortaliças. E faziam várias coisas semelhantes a estas. Não se pode negar que estamos diante de pessoas corretas, afastadas do mal, precavidas, extremamente zelosas da realização do bem.
Mas havia um caminho pressuposto pela Lei que os pés dos fariseus não estavam conseguindo tocar, embora fossem prontos a cumprir as regras objetivas que esta mesma Lei propunha. De acordo com Jesus, os fariseus começavam do exterior, e isso não estava sendo suficiente para limpar também o interior. Se eles se ocupassem em limpar “primeiro o interior do copo” (Mt 23.24), como consequência o exterior também se beneficiaria de tal limpeza.
O zelo por correção nos fariseus é incontestável. Isso é matéria que precisa ficar bem aprendida. Aliás, se a sociedade brasileira atual fosse orientada pela cultura e religião dos fariseus, eu não tenho dúvidas de que estaríamos muito melhores quanto à moral e aos bons costumes.
Jesus, porém, nos muitos confrontos com esse grupo de pessoas, deixou claro que havia algo superior. O zelo era importante, a correção tanto quanto, mas a proposta do Pai, que Jesus viera tornar manifesta, era a de nos fazer santos. Eis uma palavra semanticamente bem contaminada, como tantas outras, pelo uso religioso indevido que dela se fez ao longo da história. Não são poucas as pessoas que torcem o nariz quando ouvem falar em santidade. Dentro e fora da igreja. Os mais lúcidos têm a prudência de perguntar: o que você está querendo dizer com santidade?
Bem, não estou falando da “santidade” dos fariseus, tampouco da santidade daqueles que a associam ao mero cumprimento de regras e mandamentos. Mas também não estou falando da santidade daqueles que desprezam e debocham das regras e dos mandamentos, julgando-se acima de “sistema tão primitivo e ultrapassado”. Neste assunto, é difícil reconhecer onde está a fronteira. Muitos a estabelecem contrapondo espiritualidade e religião. Não é essa distinção que quero adotar nesta reflexão. Explico-me. O adjetivo “religioso”, normalmente empregado por aqueles que se julgam não religiosos, é uma carapuça que somente Deus poderia atribuir a alguém, dada a sua onisciência quando enxerga muito mais do que os olhos são capazes. Muitos “espirituais” se definem a partir do seu desapego à literalidade da letra, por seu pretenso conhecimento da graça divina, pela intimidade que julgam manter com Deus, por sua interpretação privilegiada e profética de textos e contextos bíblicos que os colocariam bem distantes de uma cristandade de visão estreita e estereotipada (os religiosos), aferrada a rituais e tradições. Lógico que tal perfil jamais seria admitido, sem rodeios e à luz do dia, por esses “espirituais”. No entanto, não raro, quando se trata de “botar a mão na massa” – seja para dar banho em idosos cheios de chagas, seja para passar muitas noites acompanhando enfermos em hospitais, seja para sair às ruas de madrugada oferecendo um caldo quente e cobertores limpos a mendigos –, muitos “espirituais” são obstados por sua compreensão “elevada” de Deus. Sua abstração e visão profética tornam-nos imobilizados para coisas práticas. Aqui, embora não desconheça a realidade de dons e atuações diferentes no corpo de Cristo, abstenho-me de enveredar por uma longa discussão que talvez somente servisse para justificar a omissão dos que não se sentem chamados para isso ou aquilo. Há muitos “religiosos” de vela, batina e tradições cristalizadas, com rigidez de horários e formas de cultuar, e no entanto misericordiosos até a raiz da alma.
Considerando o embate de Jesus e os fariseus, queria pensar essa fronteira a partir do fato de que algumas de nossas atitudes continuam não nos fazendo alcançar o caminho da justiça e da misericórdia, que é o centro da lei de Deus. Ou, de outro modo: com nossas atitudes, continuamos tornando evidente que ainda não fomos acessados por tal caminho. Os fariseus eram corretos; alguns, irrepreensíveis. Mas há mais de Deus para nós. É preciso ser irrepreensível, não há dúvida, mas isso vem depois. “Sede santos porque eu sou santo”, diz o Senhor. Deus deseja que tenhamos sua natureza. Sua natureza é santidade. Mas não a santidade da religião, mal compreendida e desvirtuada, tampouco aquela inventada pelos “espirituais”, pelos crentes “descolados”. Podemos ser irrepreensíveis e nunca chegar à santidade. Aliás, santidade não se conquista como prêmio por uma vida irrepreensível. Ela nos é outorgada pela natureza do Deus santo, desde que com ele mantenhamos intimidade, relação estreita. O santo, por sua vez, é também irrepreensível. Mas não nos apressemos em tomar essas palavras como sinônimas.
De nossa parte, passamos a estabelecer a distinção do seguinte modo: os santos, de um lado, e os apenas irrepreensíveis, de outro, fazendo a ressalva de que não consideramos que ser irrepreensível seja algo de pouca monta. No entanto, não podemos deixar de considerar que ser santo, no sentido bíblico, como Jesus o assumiu, é um caminho mais elevado.
Aprendendo a dar com o Deus que se dá
Voltando ao texto de Lucas 11.37-44, percebemos que os fariseus, em sua correção e zelo, eram prontos para dar. Aliás, davam com tal disposição que deixariam muitos de nós nos sentindo avarentos. E não somente davam, desciam às minúcias no ato de dar: “dais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças”. Contudo, Jesus os advertiu de que o “dar” deles ainda não conseguia remover a sujeira do interior. Eles continuavam remissos, apesar de darem. Eles davam o dízimo, mas eram avaros quanto à justiça e misericórdia. É por isso que Jesus lhes diz algo que, presumo, tenha ficado, de certo modo, sem compreensão naquele contexto. Mesmo na passagem bíblica, numa leitura apressada, o versículo parece estar deslocado. Lembremos que o assunto, neste contexto, girava em torno de pessoas preocupadas com um bom comportamento, porém destituídas de excelência interior. Havia uma desconexão entre o ato social, aquilo que os olhos alheios podem medir, e a inclinação das entranhas.
O que Jesus aconselha aos fariseus é: “Antes, dai esmola do que tiverdes, e tudo vos será limpo” (v.41). Estaria Jesus recomendando uma salvação interior pelo caminho das boas obras? Ou seja, a santidade viria se passassem a dar esmola? Evidentemente que não! Lembremos uma vez mais: os fariseus davam. Mas não davam de maneira que representasse a natureza do Deus que dá.
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu…” (Jo 3.16). Sim, Ele deu o seu melhor. Mas não fez isso simplesmente porque as circunstâncias o exigiram. Deus deu porque é assim que Deus é. Dar é uma expressão eloquente do ser de Deus. Quando Deus dá, Ele comunica o que Ele é, um Ser doador, generoso, que compartilha sua riqueza, sua vida. Mesmo quando não dá, Deus dá com generosidade. Sua natureza é dar.
Ao contrário, nós, muitas vezes, damos sem ter dado. Quem já não passou por conflitos, depois de ter dado algo a alguém? Deveríamos ter dado? A pessoa merecia? Ela não se aproveitou de nós? Muitas vezes damos, mas queremos continuar tendo poder sobre aquilo de que acabamos de nos desfazer. Em outras situações, negamos algo a alguém e depois nos martirizamos: não fomos egoístas? Não deveríamos dar, independentemente do que a pessoa poderia fazer com aquilo? Chego à seguinte constatação: sentimo-nos, quase que invariavelmente, sem liberdade quando damos e sem liberdade quando não damos. Deus é livre para dar porque também é livre para não dar. Nos dois casos, ele dá, e dá com graça.
Quando Jesus fala sobre dar esmola, está convidando seus interlocutores para um novo caminho. Não se trata de dar tudo como pré-requisito para iniciar neste caminho. Trata-se, antes, de mudar o estilo de vida. Trata-se de um jeito de viver que passe a compartilhar. Mas o ato não se resume a dar. É dar “de tudo o que tiverdes”. Isso significa adotar a doação em todas as instâncias da vida, nas mínimas que sejam. Trata-se de uma pedagogia divina: precisamos aprender com o Deus que dá. Isso vai nos livrar de nós mesmos, vai nos curar da remissão, da omissão, da avareza, da retenção, do egoísmo, do individualismo, do acúmulo inútil.
O Pai dá porque sempre compartilhou a vida na Trindade. Sua generosidade na criação é um testemunho inquestionável acerca disso. O Filho dá a vida espontaneamente porque ele é assim, doador (ninguém precisa extraí-la à semelhança da truculência de um saca-rolhas). O Espírito se derrama e derrama a Trindade em Pentecostes porque essa é a sua natureza.
Jesus reconhecia a intenção zelosa dos fariseus, porém estava convidando-os para um caminho mais excelente, aquele que regra nenhuma, mandamento nenhum pode conquistar. Jesus queria que eles caminhassem pelo mesmo caminho que a Trindade caminha, assim aprenderiam uma vida de partilha, de doação. Não devemos interpretar mal a fala de Jesus, como se ele estivesse exigindo esmolas para que o interior chegasse à santidade. Só se chega à santidade numa vida relacional com a fonte da santidade, a Trindade. Não há santidade disponível em outro lugar. Os mandamentos não têm santidade; as regras não têm santidade. As pessoas não têm santidade para comunicá-la ao nosso interior. Muito menos o exercício de dar pode nos comunicar santidade. Jesus sabia muito bem disso, portanto jamais introduziria os fariseus nesse caminho. O dar, aqui, não era um ato isolado que automaticamente lhes faria limpos por dentro. Não. O dar aqui é o resultado de uma caminhada com o Pai, é um aprendizado, é uma consequência, entre outras, que a natureza do Pai nos comunica. Em outras palavras, Jesus está convidando para a santidade da Trindade, que ultrapassa o dar como obediência a mandamentos. O dar como obediência à Lei traz benefícios, mas o dar como fruto do interior conquistado pelo Deus que É doador revela Deus mesmo agindo em nós. O dar, nesse segundo caso, significa que Deus alcançou espaço no coração do homem. O dízimo do endro, do cominho e da hortelã continuará sendo dado, mas doravante quem o faz transpira justiça e misericórdia.
Jesus disse ao Pai que se santificava para que nós também fôssemos santificados. O que ele está dizendo é: “Só há uma maneira de eles serem santificados, Pai: é a nossa relação. Eu me entrego radicalmente a esta relação, eu me dou totalmente a ti, devolvendo-lhe tudo o que tu me dás, sem reservas, pois assim eles podem aprender conosco”. Isto é santidade: a vida da Trindade. Jesus mergulha nela para que nós também mergulhemos. Foi esta vida que ele deu a conhecer aos seus discípulos, e estes dela testemunharam: “e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada (…) para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo” (1 Jo 1.2-3).
Vejamos, em alguns eventos bíblicos, esse caminho de santidade, cuja manifestação mais evidente é o dar. O dar como consequência da relação com a Trindade à qual o homem é convidado.
O convite amoroso a um jovem
Como resposta à sua pergunta sobre o que deveria fazer para ser salvo, um jovem de posição ouviu de Jesus que deveria atentar-se para os mandamentos. Mas isso o jovem já observava desde sempre. A conversa chega ao ponto que Jesus queria. Para aquele jovem irrepreensível faltava uma coisa: vender tudo o que tinha e dar aos pobres. Comentando esta passagem, Wayne Jacobsen, em “Deus me ama” (Ed. Sextante), diz que Jesus precisou levar o jovem rico ao esgotamento, uma vez que este ainda depositava muita confiança em seus recursos. Jacobsen usa a figura do salto em altura. Ao pedir que o jovem vendesse tudo, foi como se Jesus, conhecendo o recorde de seu interlocutor no referido esporte, elevasse o sarrafo para uma medida instransponível. Isso faria com que o jovem quedasse impotente diante de desafio tão inconquistável. Devemos notar que a pergunta inicial que motivou a conversa era: “o que eu devo fazer…?” Embora honesto, quem perguntou estava procurando em si mesmo os recursos para se salvar. Adiante Jesus vai dizer aos seus discípulos: “Os impossíveis dos homens (a salvação, por exemplo) são possíveis para Deus”. Se não formos levados a essa certeza, continuaremos acreditando que o céu é só uma questão de bom comportamento aqui na terra.
Acho muito interessante esta abordagem. Concordo inteiramente com Wayne Jacobsen. Queria também contribuir com uma interpretação para o fato de Jesus mandar o jovem vender tudo o que tinha e dar aos pobres. Aquele jovem era irrepreensível, mas Jesus queria torná-lo santo. Para isso oferece-lhe um caminho mais excelente. Guardar mandamentos era muito bom; Jesus não o desaprovou por isso. Mas o convite era para conhecer a natureza do Deus que dá e se dá. “Vende tudo o que tens e dá…” era um convite para comunhão com o Doador. E era específico para aquele jovem. Como vemos nas Escrituras, Deus nunca fez do dar um padrão, não o delimitou por regras. Zaqueu, por exemplo, decidiu dar metade, embora Jesus nada lhe tivesse pedido. Ananias e Safira deram uma parte, mas segundo o livro de Atos, poderiam ter ficado com a importância. O pecado do casal não foi uma defasagem em relação à quantidade; foi a mentira. A viúva pobre deu uma ninharia, mas deu com intensidade, e sua quantia ultrapassou elevadas fortunas de ricos doadores.
Marcos 10.21 diz que Jesus, depois de fitar o jovem rico, o amou. Só depois pediu que o jovem fosse e vendesse os seus bens. Não era uma penalização, era um convite amoroso para que o jovem zeloso e correto aprendesse a entregar a vida com o Deus sempre pronto a fazê-lo. Isso poderia levar toda uma jornada. Não era uma questão de vender imediatamente. Algo assim demora anos; o coração não se deixa conquistar de imediato. Mas o convite de Jesus sabia disso. No “vai…” de Jesus ao jovem estava subentendido o caminho novo. Ele passaria a seguir Jesus a partir desse ponto, não importa que em meio a conflitos interiores. A tristeza inicial do jovem, a meu ver, era um bom caminho. Ele sabia o quanto suas riquezas significavam para ele. O conflito era enorme. Mas se quisesse ir além daquela vida de cumprimento de ordenanças que o destacava entre muitos de sua geração, precisaria exercitar o coração com o Deus que dá. Começar a distribuir seus bens, ainda que lentamente, um pouco por dia, nos mínimos detalhes da vida, era uma tarefa para a vida toda, era começar a andar por um caminho que o conquistaria gradativamente para a vida do Deus que dá.
A generosidade que jorrava do coração de um publicano
“Hoje houve salvação nesta casa…”, disse Jesus ao publicano Zaqueu logo após este declarar que estava disposto a dar aos pobres metade dos seus bens e restituir quadruplicadamente àqueles a quem houvesse defraudado. Jesus se deu a ele no caminho de Jericó, e Zaqueu foi iniciado num caminho excelente de responder a essa doação de Jesus. A salvação estava em curso, Jesus o notou, pois havia liberalidade no coração daquele homem.
Precisamos questionar as muitas conversões que, não obstante alardeadas, mantêm as pessoas remissas, acumulando, retendo. O encontro de Zaqueu com Jesus é contundente: o maioral dos publicanos percebe de imediato que vinha errando o alvo. Juntara muitos bens, pilhara fortunas, mas continuava vazio e sem esperanças. Estava cheio de si e de bens que o dinheiro pode comprar, e por isso mesmo tinha que ser salvo, a começar de si mesmo. A generosidade e a largueza do coração de Jesus naquele dia mostram a Zaqueu a futilidade de sua vida de acúmulos, o desperdício de uma existência voltada para o próprio umbigo. Sua atitude de restituição e de compartilhamento torna patente que o Deus que dá estava se dando a Zaqueu naquele momento.
Um samaritano conquistado
Essa oposição santidade-irrepreensibilidade pode ser vista também em duas atitudes tão antagônicas explicitadas por Jesus na parábola do bom samaritano. Quem poderia acusar o sacerdote e o levita de incorreção naquele episódio? Foi por um motivo legal que eles não atenderam o moribundo estirado à beira do caminho. Não podiam se tornar cerimonialmente imundos, tocando em sangue ou cadáver, se quisessem realizar suas funções no templo em Jerusalém, para onde provavelmente se dirigiam. Os mandamentos da Lei não os desaprovariam.
Mas Jesus introduz um terceiro transeunte naquela história para provar que havia um caminho mais elevado a ser escolhido, não obstante a correção da lei. O samaritano expressa o coração de Deus. Ele se dá ao ferido, não poupa recursos, tempo, montaria. Seus pés, embora na mesma estrada pela qual passaram o sacerdote e o levita, estavam percorrendo um caminho de santidade, diferente do asfalto da religião.
Uma mulher apaixonada
Um outro exemplo que lança luz e distingue santidade de vida apenas irrepreensível vemos no episódio de um banquete na casa do fariseu Simão (Lc 7.36-50). O anfitrião é remisso em dispensar etiquetas sociais em uso ao seu convidado. Mas Deus depara-lhe uma mulher pecadora da cidade para convidá-lo a um caminho mais excelente. Simão era fariseu, logo zeloso da lei, preocupado em evitar o mal. Isso se mostra logo no início da cena, quando, interiormente, ele reprova Jesus por julgar que este admitia um relacionamento socialmente inconcebível com uma mulher desqualificada da cidade. Mas Jesus conta-lhe uma história: dois devedores foram perdoados por seus credores, um deles de uma quantia irrisória, o outro de uma dívida enorme. O saldo das histórias, conclui Simão, é que aquele a quem mais se perdoou amará mais o seu credor. O perdão é o grande ativador do amor. Primeiro o credor dispensa generosidade incomum, dá com liberalidade o perdão; como consequência, desperta amor no coração dos ex-devedores.
Essa parábola estava se materializando bem diante dos olhos de Simão, em sua própria casa. Uma mulher desprezada pela sociedade irrepreensível dos fariseus, profundamente amada por Jesus, desmanchava-se em agradecimentos aos pés do ilustre convidado de Simão, lavando-os com lágrimas e enxugando-os com os próprios cabelos. Havia intensidade naquele gesto. Muito perdoada, estava amando muito. Simão, por sua vez, encarnava, em relação à parábola contada por Jesus, o papel daquele a quem pouco fora perdoado. Sua recepção a Jesus foi minimamente calorosa, manteve certa gravidade e distância, não se expandiu em afetos e demonstrações vivas de paixão. Julgando que pouco ou nada devia, considerando-se dotado de muitos recursos morais, Simão correspondentemente pouco pôde ser perdoado. Não que Jesus decidisse reter o seu perdão. Não se tratava disso. A verdade é que Simão não reconhecia a sua necessidade de Jesus. Ele se bastava. A comparação que, de início, estabelece entre ele e a mulher deixa claro o quanto se elevava aos próprios olhos. Os seus pretensos recursos morais ainda eram um entrave para que passasse a contar com os recursos de Jesus. Dessa forma, pouco demonstrava amor.
Esse acontecimento do Evangelho revela duas posturas: de um lado, o fariseu correto, respeitável, reputação ilibada, digno de consideração, mas econômico no amor, na intimidade com Jesus, contido na alegria, escasso no quebrantamento. Ele guardava mandamentos e se sobressaía, mas pouco ainda tocara no Deus doador. De outro lado, vemos uma mulher que escancarou o seu vazio e impotência diante de Jesus e experimentou um amor incontido preenchendo todo o seu ser. Como resposta ao encontro com esse Deus que se deu apaixonadamente a ela, humilde e necessitada, amou com intensidade, vencendo protocolos, derramando sua alma numa febre de resposta ao primeiro amor de Deus.
Concluindo
Assim, “… dai esmola do que tiverdes, e tudo vos será limpo” (Lc 11.41) é um convite gracioso de Deus para interrompermos a competição, a disputa, para fazermos parar o desejo de desbancar o outro, para deixarmos de lado a insistência em nos situarmos a distância do próximo com as diferenças que, quais troféus sagrados, colecionamos. É um convite para uma vida compartilhada que nos arranca de nós mesmos e nos oferece tal qual o Deus que a si mesmo se ofereceu.