Certa vez quando viajava com um amigo para atender a um dos muitos compromissos que estavam atulhando a minha agenda à ocasião, segredei-lhe que desejava imensamente não estar naquela estrada, com destino e horário certos, ainda mais sob tão ensolarada manhã de sábado. Se pudesse, disse-lhe, estaria numa feira livre, de chinelos e bermuda, andando de um lado para o outro, à toa, bisbilhotando nas barracas, esbarrando em pessoas, parando para comer um pastel de palmito, provando pedaços de queijo fresco, salame, doce de leite, uva, laranja lima… Este amigo entendeu o espírito do que eu estava tentando lhe dizer e acrescentou: “… fazendo coisas de gente, não é mesmo?”
Recordando esse episódio, considerei o quanto alguns papéis que assumo no dia-a-dia acabam me distanciando de mim mesmo. Por exemplo: como professor, não raro sucumbo à tentação de tentar dar um espetáculo a cada aula, numa tentativa de continuar garantindo a atenção de uma plateia cada vez mais dispersa.
É talvez o medo de errar e de perder valor aos olhos dos outros a razão pela qual decidimos nos manter tão enraizados no território da competência, dela precisando frequentemente dar exageradas demonstrações, sem sequer observarmos o quão artificiais nos tornamos. Rapidamente, o mundo se divide entre os que devem ser incensados, em virtude de suas capacidades, no altar da admiração dos menos dotados e os que se prestam a tal admiração, fazendo dela um alvo que dificilmente atingirão.
Não é difícil reconhecer essa armadilha da competência também no mundo religioso. Seu funcionamento favorece os desempenhos individuais e destaca pessoas possuidoras de habilidades especiais. Aliás, as instâncias da religião protagonizam a manutenção de muitos mitos: o do casamento perfeito, o dos filhos modelares, o da moralidade irrepreensível, o da fé e amor proverbiais, o da alegria inabalável mesmo na adversidade, o da liberação irrestrita e incondicional do perdão aos ofensores, o da vida devocional regular e sempre prazerosa, entre outros.
É verdade que nossa posição em Cristo é de uma dignidade sem par: fomos com ele ressuscitados e, com ele, nos assentamos em lugares celestiais (Ef. 2.6; Cl 3.1-4). Sim, com uma única oferta, mediante o precioso sangue de Cristo, fomos aperfeiçoados para sempre (Hb 10.14; Fp 3.15), no entanto estamos num processo contínuo de santificação e prosseguindo para alcançar aquilo para o que também fomos conquistados (Hb 10.14b; Fp 3.12-14).
A incompreensão de que só podemos conquistar o que quer que seja depois de termos sido conquistados por Cristo Jesus tem sido a causa de muitas vezes sacrificarmos a coerência e a verdade sobre a nossa real estatura espiritual por uma aparência de piedade, por um verniz de vida cristã. Muitas famílias em conflito, por exemplo, não encontram lugar de cura porque têm vergonha de se apresentarem como a peça defeituosa da engrenagem maior que é a sua igreja local. Uma vez que a piedade cosmética da congregação rouba das pessoas com problemas a bendita possibilidade de identificação, os doentes mantêm suas feridas no anonimato e aprendem logo a arte de disfarçá-las para o bem do funcionamento de suas igrejas. A manutenção dos “eus” irreais daqueles que deveriam viver de acordo com o seu verdadeiro “tamanho” e não o fazem responde pelas idealizações doentias de boa parte da cristandade e, consequentemente, pelas frustrações que a incapacidade de seguir modelos irrealizáveis debaixo do sol deu origem.
Servimos a um Deus extraordinário, não há dúvidas quanto a isso. Ele já fez muita coisa sobrenatural que deixaria boquiaberto até o mais incrédulo dos homens. E usou pessoas para tanto. Mas convenhamos: o extraordinário é apenas um recorte da vida. Por mais que tentemos, não temos repertório suficiente para nos mantermos extraordinários por muito tempo. Nem mesmo Deus tem expectativas altas a esse respeito. O Verbo se encarnou num convite para que aprendamos a viver o Evangelho no cotidiano, na ordem natural das coisas, vendo o mundo sendo salvo todos os dias por pequenos gestos, quase invisíveis. Os atos de heroísmo, portanto, são contingências que podem nos sobrevir em alguns momentos da existência, não sua totalidade.
O testemunho do psiquiatra cristão suíço Paul Tournier é bem ilustrativo do que estamos querendo transmitir. Convertido ao Evangelho, experimentou ainda na adolescência o desfrute de dirigir vários grupos de estudantes cristãos. Suas pregações eram obras-primas de erudição, embora ainda se sentisse afastado das pessoas. Mais tarde, com uma inquietação crescente, conheceu um grupo cristão de profissionais famosos que se reunia em Genebra. Suas expectativas pelas trocas intelectuais que aquele contato traria eram as mais elevadas. No entanto, qual não foi sua surpresa quando presenciou mentes tão brilhantes passarem boa parte do tempo da reunião em absoluto silêncio, que se seguiu de confissões de pecados praticamente irrelevantes. Que desperdício! Paul saiu furioso, porém estava mais impressionado do que era capaz de admitir. Na manhã seguinte, sozinho em seu quarto, tentou praticar a “escuta de Deus” que observara na reunião dos novos amigos. Com o tempo e a ajuda deles, experimentou a bênção de escutar e compartilhar e compreendeu que a vida com Deus não era um compartimento separado, à margem de nossas preocupações cotidianas, mas que quando nós o permitimos, ela pode permear e transformar completamente essas atividades. A custo, entendeu que experimentaria mais de Deus quanto mais se aproximasse de outras pessoas.
Já psiquiatra, Deus o levou a muitas oportunidades de compartilhamento; nenhuma, porém, tão forte quanto aquela em que precisou dividir com um paciente algo por demais embaraçoso. Esse paciente, certo dia, quis saber como Tournier usava os períodos de silêncio de que tanto falava em seus livros. Paul ousou neste dia: iriam não apenas falar sobre o silêncio; eles o praticariam. Olhos fechados, Paul orou para que o paciente tivesse uma experiência real com Deus, mas nada aconteceu. E pior: durante os minutos que se seguiram, o psiquiatra, ao invés de obter alguma inspiração divina, só conseguia pensar nas contas atrasadas e nas despesas domésticas. Mas havia um propósito: Deus pediu que Paul compartilhasse aqueles pensamentos com o paciente. Não foi sem luta que o fez. Espantado, viu o paciente finalmente revelando seu real problema: ele mentia à esposa acerca de dinheiro todos os dias, pois tinha uma vida secreta. Isso não seria possível se Paul, ao invés de compartilhar seu falível “eu”, tivesse se escondido atrás de sua fachada de “mentor espiritual”. O ensinamento era inequívoco: aproximamo-nos mais de Deus e levamos outros à mesma experiência quando estamos mais próximos de nós mesmos, quando somos mais humanos.
Com esta edição, não queremos estabelecer um pacto com a mediocridade, capitulando resignadamente diante da sentença daqueles que se assumem como os que “nasceram para dez, portanto nunca chegarão a vintém”, conforme apregoa antigo provérbio popular. Queremos, antes, refletir sobre as possibilidades do ordinário e ajustar as expectativas de nossa passagem pelo mundo, considerando a bênção que advém de se viver uma vida menor.